A morte de Odair Moniz, baleado por um agente da PSP na Cova da Moura, relembra-nos mais um episódio entre muitos outros que já aconteceram com contextos semelhantes e antecipa, de certeza, outros que infelizmente se seguirão. O mesmo com a reação maciça da população local e daqueles que se juntaram em protestos, em ações de rua e atos de violência preocupantes.
A visão psicossocial destes fenómenos é sempre ignorada, mantendo-se as raízes dos problemas bem visíveis e sem resolução aparente. Podemos já recuar à segunda metade do século XX para perceber que os trabalhos pioneiros de pedopsiquiatras como John Bowlby e Donald Winnicott continuam a fazer sentido e a alertarem-nos para a necessidade da compreensão e prevenção destas tristes situações que uma visão literalmente a “preto e branco” sempre condiciona.
Deixem-nos apenas recordar que vivemos ainda num país que, caso nos tenhamos esquecido, tem ainda quase 1/5 da população a viver abaixo do limiar de pobreza, com uma clara acentuação das diferenças entre mais ricos e mais pobres e uma assimetria de distribuição populacional que coloca ao lado da maior opulência e suposto bem-estar das grandes cidades, a miséria e a segregação de grande parte dos bairros da periferia.
Lidamos ainda com um passado recente muito duro, enquanto país colonizador e, séculos depois, descolonizador de forma desastrosa, tal como o foi da maneira que lidou com o regresso dos então chamados “retornados” e as posteriores migrações de pessoal dos PALOP. Já agora, como estaremos atualmente a lidar com as novas populações em zonas onde, por exemplo, há escolas que juntam lado a lado crianças e adolescentes de mais de três dezenas de nacionalidades diferentes e fazem uso do que designamos de “português língua não materna”?
Trabalhei quase sete anos em Centros Educativos, antigos Colégios de Reinserção, onde continuam a ser colocados todos os jovens com evolução delinquente (e que até há poucas semanas atrás estavam em total rotura de vagas), isto é, rapazes e raparigas com idades a partir dos doze anos e até aos dezoito e que cometeram atos qualificáveis como crime, sendo que partir dos dezasseis, podem ser referenciados ao sistema criminal de adultos, porque essa é ainda a idade de responsabilidade criminal.
Aí, tal como numa Comunidade Terapêutica de que fui diretor clínico um pouco mais de cinco anos, a maior parte dos jovens é oriunda destas zonas que nos mapas sabemos bem onde estão: locais de pobreza, de não integração social e individual, cultura de tráfico, consumo e violência sempre latentes no dia a dia em que “uns” vigiam e punem “outros”, que por sua vez persistem em confrontar e desafiar os primeiros a propósito de sentimentos mantidos de raiva, zanga e ódio.
Foi já em 1944 e depois entre 1956 e 1958 que Bolwby e Winnicott escreveram artigos célebres e com títulos tão sugestivos como “Privação e Delinquência”, “44 Ladrões Juvenis” ou “Psicopatia do Desafeto”, ligando de forma clara as situações de privação emocional ou, melhor ainda, de privação psicossocial, a sentimentos básicos de injustiça e consequente expressão pela zanga, raiva e ódio.
Características comuns a estes jovens implicavam a existência de padrões de relação inseguros, figuras de vinculação ausentes ou presentes com qualidade negativa, interiorização precoce do que mais tarde James Garbarino, pedopsiquiatra que delineou o perfil dos jovens psicopatas norte-americanos responsáveis por massacres em escolas no final dos anos 90 e início do século XXI (como o de Columbine, que daria origem ao filme “Elephant” de Gus Van Sant) viria a definir como “sem ajuda” ou “sem esperança” possível, típicos de um “pensamento terminal” sobre o presente e qualquer boa perspetiva boa de futuro.
Para estes, a escola que atacaram com armas de fogo, era também um local de exclusão, de inferiorização social permanente, de incapacidade de relação, como também era o que encontrei juntamente com uma equipa de intervenção psicossocial que liderei entre 1998 e 2001 no âmbito da reconversão do Casal Ventoso: por exemplo, nessa época, a escola de 1º ciclo da zona tinha uma população de 300 crianças sendo que cerca de 30% tinha idade igual ou superior a doze anos (o 4º ano termina-se aos dez), sinal de desinteresse e absentismo escolar que ainda hoje é primeira causa de sinalizações às Comissões de Crianças de Jovens em Perigo.
Sabemos também que durante o tempo covid e naquele que se seguiu, estavam identificados e só na periferia de Lisboa dezenas de “gangues” de jovens com evolução marginal e delinquente (alguns deles rivais), quase todos ligados às problemáticas habituais do tráfico e consumo de drogas, prostituição, bem como (e não era novidade) negócio ilícito de armas. E que, ainda como fator de risco acrescido, existe hoje uma forma de comunicação e sincronização de ação que é absolutamente fácil, rápida e altamente eficaz: os telemóveis, a net e a gravação e divulgação de imagem.
Na Cova da Moura houve mais uma noite de desacatos e tragédia que tem tanto de anunciada como de escusada. Houve polícias em ação de que resultou um morto. Os polícias são dos grupos profissionais sobre maior pressão psíquica, com altas taxas de perturbações de ansiedade e do humor, depressivas. Agem em territórios de risco onde são sempre mal recebidos, como se todos não precisássemos deles num papel social de “autoridade protetora”. Dispara quem, de alguma maneira real ou imaginária (também ela projetiva) se sente ameaçado por algo ou alguém.
É sobre as forças policiais, na personificação do interdito, da contenção e da eventual punição, que as populações projetam a sua mais que compreensível zanga e revolta, desafiando-os, agredindo-os, recebendo como o retorno a escalada dos comportamentos mais indesejáveis: o uso das armas.
Quando no mês de agosto de 2011, Londres viveu os maiores desacatos públicos com intervenção de forças policias e de segurança desde o final da segunda guerra mundial, sabemos que tudo começou por algo bem parecido: a morte a tiro de um homem, por parte da polícia, numa zona multirracial da cidade, no dia seis desse mês. Na manhã do dia nove, a cidade era um caos de lutas, atos de vandalismo, saque, violência e terror que tinha colocado na rua mais de 6000 agentes que conduziram mais de 200 detenções (a maioria dos quais em menores de 18 anos) e provocaram ferimentos graves em 44 polícias. Como num rastilho imparável ao longo desses três tristes dias, seguiram-se obviamente (pela sua densidade populacional e respetiva acumulação de zonas de risco) Birmingham e Manchester.
A vida, felizmente, não é a preto e branco. Uns e outros em lados opostos de barricadas. Há muito mais para além disso: há causas, desenvolvimentos, contextos e expressões diversas das mesmas coisas. E, sobretudo, como quisemos deixar bem vincado, há raízes profundas para estes problemas que, no campo da prevenção e intervenção precoce implicam medidas concertadas entre saúde (mental), educação, proteção social e justiça. Há anos que o dizemos, há anos que tudo continua a decorrer sem mudanças evidentes.
Quando finalmente formos UNS COM OS OUTROS e também UNS PARA OS OUTROS, talvez aí se consiga maior paz social. E as armas fiquem mais nos locais de onde não deveriam sair, porque as populações outrora ditas “marginais” ou encaradas no que o sociólogo Zygmunt Bauman como mero “efeito colateral”, vivem em condições globais mais dignas, com verdadeiro sentido de integração e pertença, em espaços habitacionais e de socialização minimamente dignos desse nome e não feridas abertas aos olhos daqueles que, como eu, se chocam com o horrível desrespeito ao mais básico da “condição humana”, como descreveu a filósofa Hannah Arendt.
Se é possível? Acredito que sim. Se isto são pensamentos de esquerda ou de direita, não sei. Que estão para além de uma visão simplesmente liberal e economicista da sociedade, não tenho qualquer dúvida. Que pressupõem uma genuína preocupação social com os mais frágeis, os excluídos e os que sofrem, sei que sim. Que gostaria que correspondessem a um muito mais amplo pensamento humanista, quem me dera acreditar que também.
De qualquer forma, não custa perceber para tentar mudar as coisas.
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