O cenário idílico de Bad Hofgastein, na Áustria, contrastava com o pessimismo dos especialistas e líderes políticos que ali se reuniram na semana passada para mais um encontro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Europa, com o sugestivo título “Os sistemas de saúde em crise: lidar com as ondas de choque e a fadiga”. Há um ano, a organização não usava meias-palavras para alertar, num importante relatório, para os riscos que antevia adiante: trata-se de “uma bomba-relógio”. Sem uma intervenção imediata, a falta de trabalhadores da saúde na Europa pode provocar uma “catástrofe”.
As causas identificadas para este estado de coisas são múltiplas, alinhadas numa tempestade perfeita. Os sistemas de saúde europeus já enfrentavam problemas significativos antes da Covid-19, desde cuidados primários e sociais subfinanciados até à escassez de mão de obra e desigualdades no acesso, ao mesmo tempo que se deparavam com desafios crescentes, como o envelhecimento da população e o aumento das doenças não transmissíveis. A crise que se seguiu – incluindo uma pandemia em curso, a guerra na Ucrânia e a inflação – apenas exacerbou a situação, levando os sistemas, e em particular a força de trabalho da saúde e dos cuidados, ao limite. Faltam já hoje cerca de 1,8 milhões de profissionais na região europeia e espera-se que esse número suba para quatro milhões até 2030 se nada for feito para corrigir esta tendência.
Portugal não está, pois, sozinho no caos que se abateu sobre a saúde. Mas tem especificidades locais próprias. Discrepâncias grandes entre as condições oferecidas nos serviços públicos e privados. E um sistema público que assenta, em larga medida, em longas horas extraordinárias, acima do que é considerado sustentável, e até saudável, para a boa prestação dos cuidados. De tal forma grave que a recusa agora anunciada dos médicos em fazer mais horas extras além das 150 previstas na lei pode afetar um milhão de utentes. E ameaça, segundo a Ordem dos Médicos, o regular funcionamento de dezenas de serviços de urgência no País. Em 25 hospitais, pelo menos um serviço não será assegurado. Na segunda-feira, alguns já foram fechados em Chaves, Barcelos, Tomar, Santarém, Caldas da Rainha e Guarda. “O que está a acontecer no momento pode tornar-se catastrófico nos próximos meses se nada for feito. É uma crise sem precedentes”, diz o bastonário, Carlos Cortes.
A questão que se coloca é só uma: quanto tempo pode durar um sistema que assenta na boa vontade de quem o põe a funcionar? Até pode subsistir durante um período largo, mas, com elevada probabilidade, a generosidade numa relação laboral acaba por esgotar-se – é isso que, aliás, a distingue da solidariedade ou da caridade. Por mais amor que tenham à profissão e até ao SNS, os profissionais de saúde não são voluntários – são trabalhadores.
O valor das horas extras pagas em 2022, que ascenderam a 108 milhões de euros, dava para pagar o salário anual a 2 775 médicos no SNS em início de carreira, estimou o ECO. O problema é só um: onde é que eles estão? Quem é que quer ficar a trabalhar para o SNS em 2023? Dizem-me os muitos médicos que conheço que isso exige, hoje, um misto de abnegação financeira, paixão pela profissão e, sim, loucura.
Como se sai daqui? Esta é a resposta que por toda a Europa se procura. Em Portugal, temos um novo estatuto do SNS, uma nova equipa ministerial e uma direção executiva a estrear. Vai ser preciso melhor organização, mais autonomia e mais dinheiro (que tem de ser visto como um investimento, e não como um gasto). E muita sensatez e sensibilidade para falar com os médicos, antes que a paciência extraordinária se esvaia.
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