Logo no princípio do ano, soube-se que qualquer pessoa que estivesse a ser investigada “por atos de violência” não poderia assistir aos prémios César, conhecidos como os Oscars franceses. A Academia das Artes e Técnicas do Cinema gaulesa permite que os atores, produtores e realizadores sejam nomeados, mas impede que se sentem na plateia – que participem na festa, digamos. Se a persona non grata em causa vencer alguma categoria, também não poderá delegar nem proferir discursos por interposta pessoa. Não haverá, portanto, qualquer tipo de celebração, o que, para efeitos da cerimónia, é como se não existisse. “Por respeito às vítimas (mesmo presumidas em caso de indiciamento ou condenação não transitada em julgado)”, justificou a academia, “optou-se por não dar destaque a pessoas que serão postas em causa pela justiça por atos de violência.”
A decisão foi tomada depois de serem conhecidas as acusações de natureza sexual contra Sofiane Bennacer, protagonista do filme Les Amandiers, apresentado oficialmente no Festival de Cannes do ano passado. No final de novembro, o jornal Libération publicou testemunhos de várias mulheres que acusavam Bennacer de violência sexual e Carla Bruni, antiga primeira-dama e irmã da realizadora, Valeria Bruni-Tedeschi, veio a público chamar a atenção para a importância da presunção de inocência. “Estou solidária com todas as mulheres, comprometidas e implacáveis na defesa das vítimas. Mas a feminista que sempre fui, hoje, quer dizer que não aliviamos a dor das vítimas criando novas vítimas, de maneira selvagem, aleatória e igualmente injusta”, escreveu Bruni nas suas redes sociais. Bennacer nega tudo, mas, na cabeça de todos, permanece a memória recente do caso Polanski, que há três anos faltou à cerimónia dos César por temer um “linchamento público”. Desta vez, com Bennacer, a pressão social foi de tal ordem que a Academia francesa acabou por retirar o seu nome da lista de atores “revelação do ano”.
Em tempos de polarização extrema, como os que estamos a viver, o terreno da cultura de cancelamento é tão polémico quanto escorregadio, já se sabe. Nasceu associada ao #Metoo e a outros movimentos que tiveram o mérito não só de denunciar enormes injustiças mas também de permitir que muitas vítimas falassem sem medo de retaliações e, no fundo, sofressem duplamente. Perante os casos concretos, manda a prudência que se faça silêncio e que, serenamente, se aguarde que tudo fique esclarecido nas instâncias próprias. De forma genérica, há que atender aos fundamentos da justiça social e da afirmação dos direitos de minorias, ignoradas e ostracizadas durante séculos. Se queremos construir um mundo mais justo, temos de estar disponíveis para ouvir e para dialogar – mesmo quando o diálogo é difícil, mesmo quando os argumentos são descabidos, mesmo quando o interlocutor ameaça destruir-nos.
Mais do que o primado da lei, que nem sempre consegue acompanhar as exigências destes tempos fugazes, importa seguir o primado da tolerância, o contrato social, os princípios e os valores fundamentais. Num diálogo que atordoa até os mais iluminados, nem sempre é fácil manter a cabeça fria, sobretudo no meio do ruído ensurdecedor. O urgente não é escolher um dos lados da trincheira ou serrar fileiras, mas antes procurar o centro que há de estar algures entre os extremos, a ponderação e o equilíbrio. Aceitar, até, ser acusado de conservador, se isso significar recusar linchamentos, simplificações de realidades complexas e dicotomias que apenas existem nas redes sociais (sim, às vezes, também é preciso saber desligar das redes). Na academia, por exemplo, é ver o ponto a que já chegou a cultura de cancelamento nas universidades norte-americanas na série The Chair, com Ji-Yoon Kim a interpretar o papel de uma professora de Literatura, banida sem dó nem piedade. Ainda há um mês, num artigo sobre guerras culturais que publicámos na VISÃO, o escritor e professor Rui Zink contava que, num verão que passou em Vermont, nos EUA, dois alunos não falavam com ele por, supostamente, Zink representar o colonizador.
No mundo da arte, também temos assistido a episódios absurdos, perto do non sense, muitos bebés atirados com a água do banho, para usar uma expressão que deveríamos evitar se fôssemos absolutamente zelosos com as questões do politicamente correto. Há um filme que está prestes a estrear-se em Portugal e que promete inquietar os espíritos mais assertivos: em Tár, Cate Blanchett faz de uma maestrina genial a quem o discurso sobre as questões identitárias, os privilégios dos brancos ou a cultura do cancelamento nada diz. Martin Scorsese considerou que se trata de um filme na corda bamba; a crítica tem escrito que é ambíguo e, por isso mesmo, perturbador. Afinal, mais do que para julgar ou linchar, não é para desconcertar que serve a arte?
Breviário
DOIS PAPAS
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TENDÊNCIA PARA COMPLICAR
Os contornos do escrutínio proposto pelo primeiro-ministro ainda estão por definir, mas a minha primeira reação é: seguir as leis, os preceitos e os princípios éticos já existentes não chega porquê? Criar um mecanismo formal não é garantia de coisa nenhuma
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