Não se pode dizer que os primeiros dias do ano foram monótonos no Brasil. Logo em 1º de Janeiro, graças à fuga de Jair Bolsonaro para os Estados Unidos da América, o mundo testemunhou um dos mais belos espetáculos de transmissão da faixa presidencial ao seu sucessor, Lula da Silva. Ausente Bolsonaro, a tarefa incumbiu a algumas pessoas que, juntas, representaram simbolicamente o povo brasileiro. Nada mais justo que o ‘brasileiro’ entregasse a faixa presidencial para aquele que foi democraticamente eleito (quer gostem ou não).
É assim que funcionam as regras democráticas. Entretanto, ao que parece, a parte “há regras” foi esquecida. Perdido o jogo, Bolsonaro amuou, chutou o tabuleiro para que ninguém mais pudesse brincar, bateu a porta, e ainda deixou o quarto desarrumado – tal e qual criança mimada. Seria apenas lastimável, se não fosse o que veio a seguir.
Há exatos sete dias após a posse presidencial de Lula da Silva, a capital Brasília foi invadida pelos apoiantes de Bolsonaro. Autointitulados “cidadãos de bem”, tinham o propósito de restituir a ordem, já que a fraude eleitoral estaria a permitir que um golpe de Estado fosse levado a cabo por um ex-presidiário (expressão utilizada por Bolsonaro durante a sua campanha eleitoral) que ora governa o Brasil. Risível, se não fosse trágico.
Milhares de pessoas trajadas com as cores verde-amarelas e com a bandeira do Brasil em punho ocuparam a Praça dos Três Poderes em Brasília e irromperam no Congresso Nacional, no Palácio do Planalto e no Supremo Tribunal Federal (sedes, respectivamente, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário).
Não bastasse a apropriação indevida das cores e do símbolo nacional, ao tentarem “restituir a ordem”, fez-se o caos e a desordem. Resultado: vandalismo, depredação de edifícios e monumentos arquitetónicos, destruição de objetos e documentação; e, pasmem (!), roubo de obras de arte e de armas de fogo durante a invasão do palácio presidencial. Situações que foram agravadas por uma aparente condescendência dos policiais militares incumbidos da tarefa de dispersar os manifestantes, e do próprio governo do Distrito Federal, cuja inércia na adoção de ações reativas rendeu acusações de compactuação com o anterior presidente.
Numa (in)feliz coincidência, o então Secretário de Segurança do Distrito Federal (ex-Ministro da Justiça de Jair Bolsonaro) também se encontrava nos Estados Unidos na altura em que as invasões em Brasília ocorriam. Bem diz o ditado: “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Contudo, o Secretário de Segurança sentiu na pele: foi imediatamente exonerado do cargo pelo Governador do Distrito Federal que, em seguida, desculpou-se para com o Presidente Lula da Silva.
Sob a justificação da necessidade de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública, Lula da Silva decretou a intervenção no Distrito Federal. Prevista no artigo 34º da Constituição Brasileira de 1988, a intervenção federal é uma medida temporária, de caráter excecional, que afasta a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Decretada a intervenção no Distrito Federal para a garantia da manutenção da ordem pública, os poderes das autoridades daquele ente federativo passaram a ser exercidos pelo governo central, através de um interventor nomeado pelo Presidente da República. Bem vistas as coisas, um pedido de desculpas do Governador do Distrito Federal após o decretamento de uma intervenção federal foi bastante conveniente, dado que não lhe restavam outras opções.
A “versão tropical da invasão do Capitólio”, presenciada em Brasília, reflete a imitação de comportamentos antidemocráticos ocorridos nos Estados Unidos após a vitória de Joe Biden. Não é segredo que Jair Bolsonaro nutre por Donald Trump forte admiração, a ponto de fazer uma constrangedora declaração de amor após o término do seu discurso na Assembleia Geral da ONU, em 2019 – o inesquecível “I love you, Trump”. O deslumbramento de Bolsonaro pelo ex-presidente norte-americano somente é demonstrativo de uma deplorável subserviência, própria daqueles que não têm o seu amor correspondido.
Ainda mais lamentável é a democracia brasileira ter que pagar o preço: Bolsonaro insiste em afastar a sua responsabilidade pelos atos de vandalismo praticados por seus apoiantes, cujo conceito deturpado de “patriotismo” os fez sair da frente dos quartéis-generais do Exército diretamente para as ofensivas em Brasília.
As falsas notícias disseminadas pelas redes sociais, a retórica golpista de Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral e o silêncio ensurdecedor que se seguiu após a sua derrota, culminando com o ataque às instituições democráticas, somente depõem contra o ex-presidente, que há muito deveria ter apaziguado o ânimo de seus apoiantes.
“A violência é o último refúgio do incompetente”, bem descreveu Isaac Asimov, um dos autores mais influentes e reconhecidos na área da ficção científica no século XX. Na falta de argumentos plausíveis, cruzou-se uma linha sem retorno, consubstanciada na tentativa de, através da barbárie, impedir que a democracia brasileira funcionasse.
A comunidade internacional reagiu imediatamente, prestando apoio e solidariedade ao atual governo brasileiro. Representantes dos três Poderes manifestaram seu repúdio à forma antidemocrática do protesto, cobrando responsabilizações e convergindo sobre a necessidade de respeitar a legalidade, os princípios e os valores da Constituição.
Independentemente do posicionamento político que se tenha, o bom senso ensina que, num Estado Democrático de Direito como o Brasil, não é próprio que as sedes dos Três Poderes sejam invadidas e destruídas. Há limites até para a falta de noção. Deste modo, as intenções de retomar o poder, afastando Lula da Silva, sofreram um revés: fomentaram a coesão.
Talvez não seja o fim da ideologia bolsonarista, mas tais ataques podem ditar o declínio de Bolsonaro como líder político e o fortalecimento de uma terceira-via de centro-direita mais moderada.
“Um filho teu não foge à luta” bradavam os “cidadãos de bem” que promoveram o triste espetáculo em Brasília, numa alusão ao hino nacional brasileiro. Sob a égide de um patriotismo excludente, cuja luta só a eles convém, esqueceram-se apenas de que, o mesmo hino, em verso anterior, menciona que a Justiça ergue a clava forte.
E a Justiça tarda, mas não falha.