Falta pouco mais de um mês para o centenário de José Saramago, que começou a ser comemorado um ano antes e continuará a celebrar-se para lá do dia 16 de novembro de 2022, quer por via da programação oficial – comissariada por Carlos Reis, especialista na obra do escritor –, quer através de iniciativas que, um pouco por todo o lado, vão surgindo para homenagear o único autor de língua portuguesa a ser distinguido com o Prémio Nobel de Literatura. Várias dessas iniciativas são de cariz editorial e, como editor que sou, escolhi destacar três, que considero meritórias.
Começo pela belíssima edição especial, com chancela da Porto Editora e do Círculo de Leitores, de “Viagem a Portugal”. Um objeto distinto, que inclui todas as fotografias (na sua maioria, inéditas) tiradas por Saramago ao longo daquela jornada realizada entre outubro de 1979 e julho de 1980, justamente a convite do Círculo de Leitores, que assinalava dez anos de atividade em Portugal. Mais duas valiosas iniciativas motivou aquele aniversário: um prémio literário para inéditos e uma outra edição em livro. Ideias brilhantes, como veremos, e frutos do pensar conjunto do administrador Manfred Grebe e do diretor editorial Manuel Dias de Carvalho. O Círculo de Leitores, como é sabido, procurava levar livros a todo país, mesmo àquele Portugal que não conhecia livrarias. E, formando tantos leitores, fazia inteiro sentido criar um prémio que desse a oportunidade, aos que fossem aspirantes a autores, de se lançarem na escrita, até porque muitos viveriam demasiado longe da capital, onde tudo se passava e decidia. E mais sentido fazia ainda publicar dois livros ambiciosos e importantes do ponto de vista social e cultural. Um deles, já o disse, era «Viagem a Portugal», que em boa hora – como o tempo veio a demonstrar – Dias de Carvalho convidou José Saramago a escrever; o outro era o «Cancioneiro Popular Português», cujo autor seria, claro, Michel Giacometti. Ambos homenageavam um país diferente daquele que aparecia nas notícias: foi um país, em tantos casos, esquecido o que figurou na obra de Giacometti (que contou com a preciosa colaboração de Fernando Lopes-Graça) e foi um país desconhecido para muitos aquele que Saramago escreveu. Esses dois Portugais eram, naturalmente, o mesmo, mas constituíam também o país ao qual o Círculo de Leitores fazia chegar livros. Aliás, ainda está por estudar convenientemente o papel do Círculo de Leitores em Portugal, no âmbito da democratização do acesso ao livro e à leitura, mas, mutatis mutandis, talvez não seja muito distinto daquele que tiveram as extraordinárias Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.
Merece destaque também a recentíssima edição, também pela Porto Editora, que publica desde 2014 a obra de Saramago, do primeiro livro de Pilar del Río. Intitula-se A Intuição da Ilha e, fazendo-se fé no subtítulo, dá conta d’Os Dias de José Saramago em Lanzarote, onde viveu dezassete anos, mas a verdade é que consegue muito mais do que isso. Em grande medida, porque o que nele faz Pilar del Río é, assumindo o papel da jornalista que nunca deixou de ser, obnubilar-se, colocar-se na sombra. Supomo-la lá, sabemo-la lá, mas Pilar simplesmente não aparece e tal opção permite que o leitor centre toda a atenção no escritor. Mas o que mais me impressionou no livro foi constatar que, de tanto ler, traduzir, ouvir, conversar e conviver com Saramago, Pilar del Río apresenta uma prosa que é claramente devedora da do escritor e que, em muitos momentos, decalca as construções frásicas – e a forma de raciocinar que lhes subjaz – de Saramago. Cheguei mesmo a sublinhar várias passagens que poderiam ter sido escritas por ele, dono desse estilo único e tão poderoso (que o próprio explica de modo muito interessante, por exemplo, no livro Diálogos com José Saramago, de Carlos Reis), que contamina facilmente quem àquele ritmo e musicalidade adere. Ora, com esta forma, o livro robustece-se, ganha ainda mais dimensão e interesse, a juntar ao facto de estar cheio de encontros com outras celebridades literárias e artísticas, de viagens, afetos e emoções. Também revela hábitos, desde as torradas de pão negro com azeite e açúcar, aos passeios a pé, ou à convivência com os seus cães, e desoculta a forma e os momentos em que as ideias para os romances surgiam a Saramago, a oficina de escrita e os momentos em que terminava os livros e os partilhava com a família e amigos próximos.
Não era minha intenção centrar este texto no brilhantismo das ideias dos editores dos livros que aqui abordo, mas é inevitável que também o faça. Em parte, porque Adélia Carvalho, responsável pela Tcharan, uma pequena e distinta editora portuense, soube pegar – com a colaboração do professor universitário Carlos Nogueira, vencedor do Prémio Vergílio Ferreira 2022 com um livro de ensaios sobre a obra de Saramago – num dos textos mais conhecidos do escritor, o discurso por ele proferido quando recebeu o Prémio Nobel, e que começa com uma frase muito conhecida – “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever” –, e fazer dele um belíssimo livro para todas as idades. Em Jerónimo e Josefa, o leitor fica a conhecer a avó Josefa – a quem Saramago dedicou outros escritos – e o avô Jerónimo, o homem que estimulou a curiosidade e a imaginação de Saramago, bem como a forma como o fez. Este é um texto que já sabíamos maravilhoso, mas que é agora sublimado pela arte de João Fazenda, autor das ilustrações, e atinge os mais admiráveis momentos na dupla página em que o leitor vê Josefa, já viúva, sentada à porta da sua pobre casa, olhando o céu estrelado, e dizendo “o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”, bem como na página despida de gente em que se fica a saber que Jerónimo já se tinha ido, mas não sem antes – ao perceber que pouco mais duraria – se despedir, por meio de um abraço, uma a uma, das árvores do seu quintal, com as quais tanto tempo passara.
Bem-hajam, por estas ideias, os editores aqui referidos. Viva José Saramago, por tudo o que nos ofereceu. Esta não é a primeira vez que escrevo sobre o escritor e também não será, espero, a última. A obra que deixou foi e é para mim sinónimo de espanto, esse componente literário que é transformador da leitura. O espanto perante o génio que, quando encontrado nas páginas de um livro, cria ou alimenta o fascínio pela literatura. Num país em que alguns de nós, como uma vez escreveu Miguel Esteves Cardoso, seguem atentamente todas as artes que dispensem a leitura, há 24 anos que podemos celebrar, como neste dia 8 de outubro de 2022, o Prémio Nobel de Literatura atribuído a José Saramago. Façamo-lo. Os livros que nos deixou estão aí e outros, decorrentes de boas ideias, vão surgindo, para deles fazermos bom proveito.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.