Nos acidentes de viação, a difícil comunicação entre a seguradora e o sinistrado (pessoa que sofre um acidente), a não obrigação da seguradora de tratar o sinistrado e a falta de informação esclarecedora sobre este tema, faz com que, para quem sofre este tipo de acidentes, possa ser difícil orientar-se e saber como proceder durante os vários passos do processo.
Os acidentes de viação são bastante distintos dos acidentes de trabalho, quer em termos de enquadramento legal e trâmites em tribunal, quer no que concerne à avaliação médica das lesões e sequelas do acidente.
Quem é responsável pelos tratamentos? O que fazer depois da alta da seguradora? Como obtenho uma segunda opinião médica? As limitações da vida pessoal também são consideradas? São algumas das questões que vamos responder no sentido de poder obter a justa recompensa pelo acidente sofrido.
Devo participar o acidente perante a seguradora?
Após a ocorrência de um sinistro que envolva danos corporais, o sinistrado, ou outro, pode participar o acidente à seguradora responsável, a qual deverá manifestar a sua posição em relação à assunção de responsabilidades no prazo de 45 dias.
Caso a empresa de seguros venha a assumir a responsabilidade, a mesma não está legalmente vinculada à prestação de cuidados médicos mas, no entanto, está obrigada a proceder ao pagamento / reembolso de todas as despesas decorrentes do acidente.
Não obstante não existir este ónus para a seguradora, o sinistrado poderá solicitar à seguradora que lhe preste esta assistência através dos respetivos serviços clínicos (geralmente os já existentes para os acidentes de trabalho) ou dos seus prestadores convencionados ficando, no entanto, ao critério da seguradora aceitar ou não este pedido.
Por vezes, é do interesse da própria seguradora acompanhar o tratamento dos sinistrados, sobretudo nos feridos graves, em virtude de lhes permitir um conhecimento constante e aprofundado da evolução clínica do lesado, ao invés de ser surpreendida no final de um processo de reabilitação que pode ser longo.
O acompanhamento médico e terapêutico vai ser pago pela seguradora? Posso escolher a clínica/hospital para a reabilitação?
Nem sempre as seguradoras assumem esse acompanhamento clínico pelo que, nessas circunstâncias, todas as despesas adiantadas pelo sinistrado serão reembolsadas mais tarde, após serem analisadas e aceites pela seguradora. Muitas vezes são reembolsadas apenas quando o processo é encerrado pelo que pode vir a ser incomportável para o sinistrado. Nestas situações pode recorrer-se à via judicial no sentido de obter uma reparação provisória.
Se não estiver a ser tratado pelos serviços da seguradora, o próprio sinistrado pode escolher a entidade de saúde pública e/ou privada, através do SNS e/ou dos seus seguros de saúde, para se tratar.
Deve para isso guardar os originais de todos os documentos comprovativos dessas despesas (com o nome e número de contribuinte do sinistrado). Isto porque as seguradoras apenas são obrigadas a proceder ao reembolso de despesas mediante o envio dos comprovativos originais.
Tive alta médica por parte da seguradora mas não concordo, o que devo fazer?
Nos casos em que estiver a ser tratado pelos serviços da seguradora, pode continuar os seus tratamentos fora da seguradora desde que haja indicação médica para tal e guardando todos os documentos originais comprovativos dessas despesas, eventuais baixas médicas e relatórios médicos. No entanto, é sempre aconselhável que previamente ao início de um tratamento externo à seguradora, esta seja informada.
A seguradora tem que me avaliar em consulta de dano corporal? Se sim, tenho direito a este relatório?
A seguradora não está obrigada a proceder a esta consulta quando solicitada, devendo apenas informar se a pretende ou não realizar. Apesar de, na maioria das vezes, a companhia de seguros proceder a esta consulta, até porque é do seu interesse, se tal não acontecer por motivo de recusa da mesma, o sinistrado deverá ele próprio promover uma perícia independente de avaliação de dano.
Se foi avaliado pela seguradora, tem, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 291/2007, direito a ter acesso a este relatório de avaliação do dano corporal.
Em que consiste uma avaliação do dano corporal pós-traumático?
É uma avaliação feita por um médico perito, idealmente com a competência em avaliação do dano corporal pós-traumático pela Ordem dos Médicos.
Depois de estabelecido o nexo de causalidade médico existem vários parâmetros a ser avaliados, incluindo:
● défice funcional temporário: período de internamento, convalescença e recuperação funcional até data de consolidação (alta médica);
● repercussão temporária profissional: períodos de baixa médica e limitação para o trabalho;
● quantum doloris: sofrimento físico e psíquico sentido após o acidente que varia numa escala de 1 a 7;
● repercussão permanente na integridade físico psíquica: qualificada em pontos até a uma máximo de 100 e de acordo com a tabela nacional de incapacidades permanentes em direito civil;
● repercussão permanente profissional: capacidade para executar as tarefas profissionais com as sequelas resultantes podendo ser compatíveis ou impeditivas;
● dano estético: alteração da forma, estética e visual do sinistrado e que varia numa escala de 1 a 7;
● repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer: afetação nas atividades de lazer, convívio social e desporto, que varia numa escala de 1 a 7;
● repercussão permanente sexual: afetação na vida sexual em termos de desempenho e gratificação e que varia numa escala de 1 a 7;
● ajudas permanentes: previsão de todos os custos relacionados com tratamentos médicos, ajuda de terceira pessoa e adaptações físicas no domicílio, trabalho e automóvel, que irá necessitar no futuro.
Tive uma proposta da seguradora, mas não sei se fui bem avaliado. Preciso de uma segunda opinião médica, o que devo fazer?
Normalmente, as propostas de indemnização por parte da seguradora têm por base uma avaliação do dano corporal. Ou seja, o valor de indemnização é calculado pelas seguradoras através de tabelas orientadoras que apenas às seguradoras obrigam, tendo por base os parâmetros do dano avaliados em consulta médica. Estes cálculos, por seu lado, são normalmente feitos pelos gestores de sinistros dos processos sendo que, aqui, não há qualquer participação do médico perito.
Para obter uma segunda opinião médica, é fundamental ter acesso ao boletim de avaliação do dano da seguradora (caso tenha existido esta avaliação) e ser avaliado por outro médico perito, independente, no sentido de perceber se este concorda ou não com a avaliação da seguradora.
Quero fazer uma avaliação de dano independente, a seguradora assume essa despesa? E estes relatórios privados são válidos em tribunal?
Não, esta despesa não é suscetível de ser reembolsada pela seguradora.
Sim, desde que elaborados por um médico perito com a competência de avaliação de dano corporal.
Tenho de apresentar-me em junta médica no tribunal?
A maioria dos processos de acidentes de viação são resolvidos fora do tribunal mediante acordo entre a seguradora e o sinistrado. No entanto, caso o processo avance para tribunal, pode ser ordenada pelo juiz, ou pedida pelas partes, uma avaliação do dano, geralmente a decorrer no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Esta avaliação pode ser feita por um único médico perito ou, menos frequentemente, por três médicos em conjunto (um representante do tribunal, outro da seguradora e outro do lesado), a chamada perícia colegial.
As limitações na minha vida pessoal também são valorizadas ou apenas as limitações para a profissão?
Embora o dano biológico/corporal seja, por definição, um dano não patrimonial, este dano é suscetível de ter consequências patrimoniais, ou seja, pode ser convertido numa quantia, num valor pecuniário.
Neste âmbito, do Direito Civil, a pessoa é avaliada de forma integral e completa e, por isso, além da incapacidade laboral devido às limitações na vida profissional, também se avalia a (in)capacidade geral de índole pessoal e os danos morais nas suas diversas vertentes, como as limitações nas atividades do dia-a-dia, domésticas, desportivas, lazer e vida sexual.
Por outro lado, nos acidentes de trabalho ou em serviço, no âmbito do Direito do Trabalho, apenas são avaliadas as sequelas que sejam geradoras de limitação na vida profissional, isto é, apenas se avalia a perda da capacidade de trabalho/ganho e não as limitações na vida pessoal e de lazer.
Fiquei com limitações no trabalho que desempenho. E agora?
O sinistrado deve ser indemnizado pela perda de rendimentos futura em virtude da sua incapacidade laboral, tendo esta avaliação por base, entre outros, os rendimentos à data do sinistro e a esperança média de vida.
É a Medicina do Trabalho / Saúde Ocupacional da entidade patronal do sinistrado o departamento responsável por receber o trabalhador após o acidente de viação, avaliá-lo e tentar, dentro das possibilidades e postos de trabalho existentes na empresa, adaptar o trabalho às novas limitações do trabalhador.
Isto quer se trate de sequelas leves que implicam esforços acrescidos na sua profissão ou mais graves, geradoras de uma incapacidade total geral e permanente para o exercício da sua atividade profissional habitual. Nestes casos mais graves, deverá a entidade patronal promover a reconversão do sinistrado para o exercício de outras atividades para as quais possua formação e competências técnico-profissionais.
Os custos futuros, associados às sequelas que tenho, serão suportados pela seguradora?
Sim, todos os medicamentos, consultas, tratamentos, cirurgias, entre outros, têm de ser assumidos pela seguradora pelo, que devem ser previstos em avaliação do dano e descritos em relatório para que, posteriormente, possam ser incluídos aquando do cálculo de indemnização.
Posso reabrir o processo depois de ser encerrado? E se piorar mais tarde?
Normalmente não se fazem reaberturas do processo, ao contrário do que acontece com os acidentes de trabalho em que os casos podem ser revistos em qualquer altura, uma vez por ano, caso a incapacidade se altere.
Assim, é fundamental que a avaliação do dano preveja corretamente o dano futuro (relacionado com o natural agravamento clínico) e os respetivos custos associados para que o cálculo de indemnização seja o mais aproximado possível do que vai gastar no futuro.
Já tinha uma doença previamente, mas que piorou depois do acidente: este agravamento é indemnizado?
Neste âmbito sim. A patologia médica existente anteriormente ao acidente, se ficar provado que agravou em termos clínicos, deve ser considerada. Normalmente, em termos periciais, atribui-se uma incapacidade inferior nestes casos, comparativamente aos casos em que antes do acidente a pessoa era saudável, sem qualquer incapacidade e/ou sem patologias naturais.
Não concordo com a indemnização proposta pela seguradora. Preciso de um advogado?
Ao contrário dos acidentes de trabalho, em que os sinistrados podem ser representados e defendidos pelo Ministério Público, nos acidentes de viação é fundamental ter um advogado a defendê-lo para que possa ter mais sucesso na hora de negociar com a seguradora ou, caso tal não seja possível, para os representar em tribunal.
Se não concordar com a proposta da seguradora, deve ser submetida a uma avaliação do dano independente, e imparcial, no sentido de contrapor a da seguradora.
Como devo proceder se um acidente de viação for simultaneamente um acidente de trabalho?
De um modo geral, os processos de acidentes de trabalho são concluídos de forma mais célere, em tribunal, do que os de acidente de viação.
Se ainda estiver dentro dos prazos legais, pode concluir o processo relativo ao acidente de trabalho e, depois, os restantes danos que não foram contemplados em sede de acidente de trabalho – uma vez que aqui apenas se visa a desvalorização profissional – serão indemnizados em processo cível (relativo ao acidente de viação).
Estas indemnizações não são uma duplicação, mas antes funcionam numa relação de complementaridade.
Qual o prazo que tenho para reclamar junto da seguradora?
No caso de um acidente de viação do qual resultem danos corporais, poderão estar em causa vários prazos mas, por uma questão de segurança jurídica, deveremos ter como referência o prazo de três anos.
Tenho um familiar que morreu no seguimento de um internamento, inicialmente originado por um acidente de viação, mas a seguradora não assumiu. Posso fazer algo?
Se for possível provar que existe uma relação causal entre o acidente, o internamento e a consequente morte, a seguradora terá que assumir essa responsabilidade. Por exemplo, se uma pessoa sofre uma fratura decorrente do acidente, mas acaba por falecer no hospital com uma pneumonia adquirida no hospital, pode existir essa relação causa-efeito, apesar de indireta.
Neste tipo de casos, a seguradora, por norma, declina a sua responsabilidade sendo, por isso, fundamental um parecer médico-legal no sentido de estabelecer o nexo de causalidade entre o acidente e a morte.
O que significa “nexo de causalidade” médico?
É a relação que se estabelece entre um evento traumático (neste o caso, o acidente) e o respetivo dano (lesões e sequelas decorrentes do acidente ou a morte) e que é o ponto de partida para a restante avaliação médica pericial.
Existem 7 critérios que o definem:
● Adequação do tipo de lesões resultantes a uma etiologia traumática;
● Adequação do traumatismo em causa para produzir essas lesões;
● Adequação entre a sede do traumatismo e a sede das lesões;
● Adequação temporal entre o traumatismo e as lesões;
● Continuidade sintomatológica entre o traumatismo e o dano;
● Exclusão da existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo;
● Exclusão da pré-existência do dano em causa.