A síntese de execução orçamental, quanto às despesas do SNS em 2021, dá-nos resultados preocupantes quanto aos exames complementares que são feitos no setor convencionado.
A despesa com serviços prestados por entidades externas atingiu o valor record de perto de 7 mil milhões de euros (56% do total das despesas), valor superior em cerca de 2 mil milhões face aos gastos registados na rubrica de pessoal.
Nesses fornecimentos externos assumem particular relevo as despesas com produtos farmacêuticos, em que se diferenciam as compras hospitalares (1.737 milhões de euros) e as vendas comparticipadas em farmácia de oficina ( 1.517 milhões de euros). Logo a seguir aparecem os MCDT(*), com um valor anual de 1.201 milhões de euros, representando perto de 20% do total de despesas do SNS em fornecimentos externos. Nesta rubrica registou-se um crescimento de despesa de 24% face ao ano anterior, valor muito superior ao registado na despesa total (7,0%) ou na rubrica dos produtos farmacêuticos (10% nos medicamentos para os hospitais e 3,1% nos vendidos em farmácia de oficina).
Há razões objetivas para este disparo no crescimento dos MCDT, tendo em conta a COVD e a necessidade de realização de testes em massa subsidiados pelo Estado, quer de PCR quer de antigénio.
Mas importa dizer que os encargos com exames no setor convencionado foram sempre uma enorme dor de cabeça para todos os governos, levando, inclusivamente, em variadas circunstâncias, à adoção de medidas administrativas de baixa de preços em razão do aumento expressivo do volume de exames. O mercado convencionado neste setor dos MCDT é dominado por quatro áreas essenciais: análises clínicas, radiologia, medicina física e reabilitação e, mais recentemente, os exames gastroenterológicos. Na última década (2010/2020) o número de operadores concentrou-se significativamente no setor das análises clinicas, em 2020 com 160 prestadores, menos de metade dos que operavam em 2010. Nos outros setores apenas na radiologia se registou, também, uma ligeira tendência para a concentração, passando-se o oposto na gastro, com um aumento de 20% no número de unidades ativas e na MFR(**) um aumento muito ligeiro de 2%. Este ajustamento da oferta pode significar maior escala e profissionalismo, designadamente na área das análises clínicas, o que parece comprovar-se com as condições de atendimento que hoje estes operadores apresentam e a rapidez e fiabilidade dos seus resultados. A capilaridade, a proximidade e a comodidade e rapidez de resposta para os utentes são uma grande vantagem dos convencionados, em comparação com a distância dos hospitais, a pletora de pessoas à espera e os horários reduzidos de atendimento.
Os encargos entre 2011 e 2019 diminuíram cerca de 6% nas análises clínicas e cerca de 8% na radiologia, mas subiram cerca de 26% na MFR e 4,5 vezes na gastro, fruto também da alteração de política quanto à prevenção do cancro colo-retal e à recomendação de rastreios em idades mais avançadas. Nos últimos 10 anos, e até 2019, as despesas públicas com estas convenções passaram de 454,3 milhões de euros em 2011 para 507 milhões em 2019, um aumento de 11,6%.
Com a pandemia assistiu-se a um aumento dos encargos em quase todas as áreas, predominantemente nas análises clinicas (202% entre 2019 e 2021) mas com valores mais modestos na radiologia (7,7%) e MFR (1%). Nos exames de gastro registou-se até uma redução de encargos (-1,3%). Neste processo, valerá a pena assinalar que, sobretudo no ano de 2020, se registou uma significativa redução nas prescrições de exames oriundas dos serviços públicos, em virtude da quebra substancial da atividade dos centros de saúde e dos hospitais, mobilizados para combater a pandemia. Com a exceção das análises clínicas, em que os convencionados viram sempre aumentada a sua faturação, nas outras áreas assistimos a uma sensível diminuição da procura entre 2019 e 2020, na ordem dos 25 a 30%, seguida de uma brutal subida generalizada no ano seguinte: 48,7% nas análises clínicas; 43,5% na radiologia; 45% na MFR; 41,3% na gastro. Há quem afirme que isso se ficou a dever à abertura do SNS para começar a recuperar listas de espera que, entretanto, se tinham acumulado no ano anterior. Mas não há nenhuma evidência no movimento assistencial que justifique aquele substancial aumento.
Outra área importante dos MCDT tem a ver com a atividade realizada no setor privado de hemodiálise. Como sabemos, em certo momento da história do SNS, foi decidido optar pelo setor privado para doentes crónicos em hemodiálise. Assim, o setor privado convencionado trata 94% destes doentes, num total de cerca de 11500 pessoas em hemodiálise. Esta decisão política, pese embora as críticas que se possam fazer a este modelo de outsourcing, tem granjeado a satisfação generalizada dos utentes e familiares e obedece a regras de controlo de qualidade através de uma plataforma de acompanhamento criada para o efeito. A hemodiálise nos serviços públicos é quase só realizada em doentes agudos, havendo apenas 752 doentes crónicos neste tipo de serviços.
Os custos da hemodiálise com o setor convencionado variaram entre 250 milhões de euros em 2011 e 280,5 milhões em 2020, com um custo por doente que baixou de, aproximadamente, 27,2 mil euros em 2011 para 23,1 mil em 2020, ou seja uma diminuição de cerca de 15%, sinal de maior eficiência, o que se regista como positivo.
Subsiste, todavia, uma questão central que esta realidade e estes números relativamente às convenções de MCDT, não nos podem deixar de colocar: toda esta atividade tem justificação clínica e concorre para melhorar o estado de saúde dos utentes? É muito difícil identificar a pertinência e adequação de milhões de exames complementares realizados por ano, e mais ainda quando a entidade requisitante – o SNS – não dispõe de critérios de oportunidade e de adequação para estabelecer regras aos seus próprios prescritores.
Sabemos que muitos pedidos são realizados sem uma história clinica prévia, sem um diagnóstico indicativo ou suspeito, sem uma observação prévia e criteriosa dos doentes e muitas vezes, pasme-se, a seu pedido. Por outro lado, sabemos também que muitos exames não estão associados a um episódio de doença ou a um percurso conhecido do doente, o que dificulta ainda mais escrutinar a sua adequação. E muitas vezes, ainda, sabemos que os exames realizados não são validados pelo médico prescritor, por deficiências técnicas ou por estarem já desatualizados no momento da consulta. Tudo isto pode representar um grande desperdício de recursos, uma inutilidade de procedimentos e um risco desnecessário para os doentes.
As soluções para estes problemas passam pela alteração substancial do modelo de convenções, por um lado, e, por outro lado, pelas regras de prescrição. Hoje estão na ordem do dia modelos de partilha de risco entre fornecedores de serviços médicos e as entidades pagadoras, por forma a identificar o valor criado para o doente, com esta ou aquela intervenção. Há métricas que podemos utilizar para aferir o grau de pertinência dos pedidos de exames e a sua adequação à situação clínica dos doentes. Os processos clínicos deveriam ser únicos e reunir toda a informação sobre exames complementares realizados pelo doente nos últimos meses ou semanas e perceber frequências excessivas ou inexplicáveis. Mas o problema é que não temos, no nosso SNS, nenhum mecanismo de avaliação para isso.
A título de exemplo, Portugal é de longe o país europeu que mais doentes tem em hemodiálise crónica por 100 mil habitantes (150,6 em 2010), só superado, ao nível da OCDE, pelos EUA e pelo Japão, e muito acima de países como a Holanda, Dinamarca, Finlândia ou Irlanda (menos de 85/100 mil habitantes) ou a Áustria, França ou Espanha (menos de 100/100 mil habitantes). Há, aparentemente, razões explicativas para este enorme desvio. Por um lado, somos um dos países mais envelhecidos da Europa e da OCDE, argumento cuja razoabilidade é muito ténue, visto que outros países mais envelhecidos, como a Finlândia ou Espanha, apresentam valores substancialmente mais baixos do que nós. Por outro lado, sabemos que a insuficiência renal está muito relacionada com a hipertensão arterial e a diabetes, cuja casuística em Portugal é muito elevada. Mas falta trabalho sério e consistente para todos ficarmos tranquilos sobre a pertinência da entrada dos doentes em hemodiálise, quando está em causa uma prestação com fins lucrativos.
O governo prevê no seu programa investir na criação das valências de análises clinicas e de radiologia básica nos centros de saúde, como forma de habilitar os cuidados primários de meios técnicos para esse tipo de exames e, assim, evitar o recurso ao setor convencionado. Seria ou não preferível renegociar o modelo das convenções, com partilha de risco e a utilização de um sistema de informação integrado entre centros de saúde e hospitais, que garantisse a pertinência dos pedidos, o controlo de qualidade e o efetivo valor criado para os utentes e para a sociedade?
(*) MCDT (meios complementares de diagnóstico e terapêutica)
(**)MFR (medicina física e de reabilitação)
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