Em criança, sonhava encontrar uma linha que constituísse, em simultâneo, o fim da chuva e o começo da bonança, a exata fronteira entre a zona em que chovia e aquela em que tudo se mantinha seco. O crescimento roubou-me esse sonho, mas a vida devolveu-mo sob a forma de realidade, no Dia Mundial do Livro, em Barcelona. E aquilo a que assisti só encaixa na categoria do paranormal. Quando acordei e corri a cortina do quarto do hotel em que me hospedei, na zona antiga da cidade, vi a luz da manhã iluminar meia dúzia de terraços revestidos a cerâmica de cor barrenta. Foi então que, arregalando os olhos, deparei com o inexplicável: os terraços encontravam-se todos molhados, menos um, que estava sequíssimo, mesmo não estando coberto por qualquer tipo de marquise, toldo, árvore ou guarda-sol. Era como se a chuva simplesmente não tivesse caído nele como sobre os demais. Os muros que o separavam dos terraços vizinhos estavam igualmente secos. A delimitação entre zona molhada e zona húmida era rigorosa – não caíra água sobre aquele retângulo.
A vida já me ensinou que nem sempre devemos querer resposta para tudo, mas, como militante do ceticismo que sou, admito que formulei múltiplas hipóteses para explicar aquele fenómeno. Não consumirei linhas com elas; focar-me-ei antes num desejo que tomou conta de mim: o de que aquele fenómeno pudesse ser transposto para toda a cidade de Barcelona, então fortemente ameaçada por chuvas, e poupasse o Passeig de Gràcia, as Ramblas e os demais locais em que se celebraria o Sant Jordi, o principal motivo da minha viagem até à capital da Catalunha. O dia do padroeiro da cidade é também o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor e há vários anos que eu desejava testemunhar as oceânicas multidões que, nessa data, saem às ruas para comprar livros. Livros e flores, porque, entre os casais, há uma tradição romântica de troca de presentes: um livro por uma rosa vermelha.
Em 2019, venderam-se 1,6 milhões de livros durante toda a semana do Sant Jordi e faturaram-se 22 milhões de euros. Para a grande festa do livro e da rosa de 2022, o primeiro Sant Jordi pós-pandémico, livreiros e floristas saíram às ruas e formaram um enorme passeio pedonal de muitos milhares de metros quadrados, unindo doze espaços. Adianto, porém, que os meus desejos de nada valeram e que, em Barcelona, o dia 23 de abril teve momentos de chuvas torrenciais, que transformaram as ruas em rios furiosos, e pelo menos três potentes saraivadas. Isso inviabilizou o Sant Jordi? Nem por sombras. Eu já o adivinhara na véspera, na festa do jornal La Vanguardia, para a qual tive a felicidade de ser convidado, e que constitui a antecâmara do Sant Jordi. Eram 400 os convidados, entre magnatas dos média, políticos como Pablo Iglesias ou os ministros catalães da cultura e do ensino superior, a diretora geral do Livro de Espanha, para além de figuras de alto coturno a nível internacional, como Juergen Boos, diretor da Feira do Livro de Frankfurt, Markus Dohle, CEO da gigante Penguin Random House, o maior grupo editorial do mundo, José Creuheras, presidente do Grupo Planeta, o maior grupo editorial de Espanha, ou Carlo Feltrinelli, presidente do Grupo Feltrinelli, uma referência em Itália. Estavam presentes também grandes autores e conversei longamente com o escritor grego naturalizado sueco Theodor Kallifatides, que em breve será publicado em Portugal, com o teólogo Pablo D’Ors, com o escritor especialista em livrarias Jorge Carrión, ou com Maria Dueñas, campeã de vendas em Espanha. O entusiasmo de cada um deles não era menor do que a minha excitação de estreante e isso permitiu-me perceber que, fizesse chuva ou fizesse sol, todos estavam con ganas de sair às ruas e de celebrar o livro e a leitura.
E foi isso, sem tirar nem pôr, que aconteceu. Não há fotografias ou vídeos que consigam demonstrar a quantidade de gente que, mesmo num dia de tempestade, encheu ruas, avenidas, praças, calçadas e até arruamentos mais estreitos e insuspeitos, para além de livrarias extraordinárias, como a Finestres, ou sobretudo a Lail, onde, a partir do momento em que se entra, apetece ir todos os dias até ao fim da vida. É sempre de bonança, o Dia Mundial do Livro. E Barcelona, já de si uma cidade livresca, neste dia é-o ainda mais; com orgulho e exuberância, afirma-se cidade dos livros que seduzem, daqueles que se podem tocar, que se oferecem aos outros e a nós próprios. Entre muitas outras, guardarei imagens de muitas dezenas de miúdos enlouquecidos disputando autógrafos do seu autor favorito e de centenas de graúdos abrigados nas estações de metro e nas lojas das marcas de luxo do Passeig de Grácia, aguardando o parar da chuva torrencial, para regressarem ao namoro dos livros. O Sant Jordi é um daqueles acontecimentos que devemos experienciar pelo menos uma vez na vida e uma tradição que, já que este é um mundo globalizado, não perderíamos nada em importar ou copiar. Eu, não tarda, estarei de volta. Faça chuva ou faça sol.
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