Depois de um longo preâmbulo, num discurso que poderia ter sido escrito para ser lido numa sessão da Assembleia Geral da ONU, em que enumerou os antecedentes, as causas e as consequências da Guerra da Ucrânia, Marcelo Rebelo de Sousa lá disse, finalmente, o que tinha a dizer. Revendo os meus apontamentos sobre o discurso do Presidente, durante a cerimónia da tomada de posse do XXIII Governo Constitucional, esta quarta-feira, 30 de março, no Palácio da Ajuda, em Lisboa, encontro quatro grandes sublinhados, todos destacados nos últimos dois minutos da alocução presidencial.
Primeiro sublinhado:
Os portugueses poderiam ter escolhido outra solução. Mas escolheram a maioria absoluta, que confere condições especiais, para fazer o que tem de ser feito, sem desculpas ou alibis.
Tradução:
O País precisa de reformas estruturais. Ou o Governo as executa, ou falhará.
Segundo sublinhado:
A maioria absoluta não significa poder absoluto nem ditadura da maioria. Deve haver diálogo e convergência, mas sem que isso sirva de argumento para não decidir ou não fazer.
Tradução:
Lá por o PS dispor de uma maioria, isso não quer dizer que não tenha de encontrar convergências no Parlamento (nomeadamente com o maior partido da oposição? Também deve dialogar com outros – sindicatos? Sociedade civil?), mas sem que isso sirva de desculpa para não tomar medidas impopulares.
Terceiro sublinhado (dirigindo-se ao primeiro-ministro):
Nos termos constitucionais, serei a garantia de que a maioria não se converterá no que não deve ser, como V. Exª foi dizendo durante a campanha eleitoral.
Tradução:
António Costa, durante a campanha, afastou a ideia de que a maioria absoluta fosse um perigo, porque tínhamos um Presidente, aliás, de uma área política diferente da do Governo, que garantia que não seriam cometidos abusos. Pois aqui está Marcelo…
Quarto sublinhado (dirigindo-se a António Costa):
A maioria absoluta foi concedida pelo eleitorado a uma força política, mas também a um homem: V. Exª. Foi precisamente V. Exª que disse aos portugueses que teriam de escolher entre dois líderes. Por isso, não será politicamente fácil que possa vir a ser substituído por outra pessoa, e se já não era fácil depois de 30 de janeiro [data das eleições] muito menos o será depois de 24 de fevereiro [início da guerra na Ucrânia].
Tradução:
Se António Costa está a pensar em deixar o Governo, a meio do mandato, para assumir um cargo europeu, o Presidente da República não aceitará nenhum substituto e convocará eleições antecipadas.
Este último sublinado é o mais importante e é aquele que marcará o dia político. Como constitucionalista, Marcelo sabe que, nas eleições, não se escolhe um primeiro-ministro, mas sim um Parlamento. Que o Governo, independentemente do seu líder, depende sempre da vontade de uma maioria parlamentar. Mas o advérbio de modo na frase, “politicamente”, é uma ressalva presidencial. Marcelo não diz que é “constitucionalmente”, ou “juridicamente” difícil que Costa saia e que o Governo continue a ser liderado pelo PS, embora com outro primeiro-ministro indigitado (seria sempre um novo governo), sem eleições. Diz que é POLITICAMENTE difícil – um sublinhado dentro do sublinhado – e vai buscar o seu fundamento à própria mensagem de Costa em campanha, quando este disse, textualmente: “Os portugueses têm de escolher quem querem para primeiro-ministro: ou alguém com experiência e provas dadas, ou o dr. Rui Rio”. Portanto, avisa Marcelo, independentemente das leituras constitucionais, a decisão política compete ao Presidente da República.
Todo o final do discurso de Marcelo é, pois, uma afirmação de que mantém os seus poderes constitucionais intactos, de que eles são, mais do que nunca, necessários, e de que não hesitará em usá-los, mediante o seu próprio criterio.
Todo discurso de Marcelo é uma afirmação de que mantém os seus poderes constitucionais intactos, de que eles são mais necessários do que nunca e de que não hesitará em usá-los
Dito isto amigos como antes: “Se possível, otmismo, sempre!”, concluiu o Presidente, num piscar de olho ao primeiro-ministro “otimista irritante”, (que se escangalhou a rir, por debaixo da máscara anti-Covid).
PS: Um post scriptum para uma referência à resposta de Costa, que não terá sido bem uma resposta, visto que o discurso já estava escrito: os portugueses votaram numa maioria, para terem estabilidade até 2026, e vão tê-la. Permanece ambíguo quais as suas intenções pessoais, se fica até ao fim ou se admite sair, não se sabendo se Marcelo fica satisfeito com a resposta. E, num aviso velado, Costa referiu a cooperação institucional entre PR e PM, tão apreciada pelos portugueses, que será para manter. Tradução: se não se mantiver, a culpa não será dele…