A meio de fevereiro, a generalidade da comunicação social nacional divulgou os resultados de um estudo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa para a Fundação Calouste Gulbenkian relativo às práticas culturais dos portugueses em 2020. O grande destaque, com direito a parangonas nos jornais e a rodapés nas televisões, foi, tristemente, o seguinte: 61% dos portugueses não leram sequer um livro durante todo o ano em análise. As redes sociais reagiram como é da sua natureza reagir: uma vergonha, uma tristeza, isto é um país de ignorantes, etc. & tal. Quem, como eu, trabalha no setor do livro, e de modo compreensível, atirou as mãos à cabeça e por instantes andou ó tio, ó tio, aqui-d’el-rei, que não se lê Portugal.
O problema pode ser das minhas lentes, mas, à parte a tagarelice e outras inconsequências, vi pouca gente interessada em discutir caminhos conducentes a melhores resultados e, por isso, o assunto foi rapidamente engolido pela voragem noticiosa em torno da qual rodopiamos todos os dias. Mas aquela era uma matéria da maior importância e que merecia um olhar mais atento. Se não vejamos: numa das notícias que li, chamou-me a atenção o facto de um dos coordenadores do estudo, José Machado Pais, se ter mostrado surpreendido com os valores apurados, sobretudo quando confrontados com os de Espanha. Aliás, o dossiê que sintetiza os resultados compara mesmo os nossos hábitos de leitura com os dos nossos vizinhos. Segui a pista e fui tentar perceber melhor o que se passa aqui ao lado. O facto é que nem precisaria de procurar, porque, nem de propósito, uma semana depois, foi divulgada a versão relativa a 2021 de um estudo, o habitual Barómetro da Leitura, promovido pela Federação de Grémios de Editores de Espanha em colaboração com o Ministério da Cultura e do Desporto. Para efeitos de comparação com o estudo português, consultei também a versão dedicada a 2020 e, para mal dos nossos pecados – ou bem, se soubermos estar atentos –, percebi que bons ventos vêm do lado de lá da fronteira. O dado fundamental é este: contra 39% dos portugueses, 64% dos espanhóis leram livros em 2020. Para além desta colossal diferença de 25%, impressiona muito o facto de que, entre os leitores espanhóis, 53% leem pelo menos uma vez por semana. Atentando no estudo relativo a 2021, conclui-se que os valores se mantiveram, mas o que maior destaque merece, e que mais me interessa salientar, é que em Espanha se está a ler mais. Se hoje há naquele país 53% de leitores semanais, em 2012 havia 47%. Ou seja: em dez anos, há mais 6% de leitores semanais no país vizinho; em Espanha, foi possível criar leitores. Por cá, o preocupante é que, em 2007, 45% dos portugueses não lia livros e, hoje, correspondem a 61% os que não leem; em Portugal, perderam-se leitores.
E porquê? Por que razão perdemos 16% de leitores em 13 anos (2007-2020) e por que motivo em Espanha se ganharam 6% em 10 anos (2012-2022)? O estudo promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian aponta o que parece ser uma pista: a maioria dos pais dos inquiridos não lhes lia histórias quando eram crianças ou adolescentes, não lhes oferecia livros, não ia com eles a feiras do livro, a livrarias e muito menos a bibliotecas. Ou seja, eram pais que não valorizavam o livro e a leitura. E, ainda que haja indícios de que essa tendência possa estar a começar a inverter-se no que toca aos atualmente mais jovens, o que pode ter que ver com o facto de os pais dos dias de hoje serem mais escolarizados, e que só reforça o que aqui defendo, parece inegável que é justamente nessas áreas – as do incentivo à leitura através da familiarização com o livro – que é necessário agir. Se nos mobilizarmos para a consciencialização e para o incentivo sério aos pais de hoje, e se reforçarmos ainda mais a ação das escolas neste âmbito, as crianças dos nossos dias serão pais que, amanhã, constituirão naturais continuadores deste trabalho. E, pelo meio, serão leitores, isto é, gente mais feliz e preparada.
Será isto o que se está a fazer em Espanha? Não sei, o barómetro não mede o grau de incentivo recebido pelos inquiridos. E se fôssemos lá ver? Nem sequer é longe e nós até percebemos bem o que eles dizem. A Diretora Geral do Livro e do Fomento da Leitura chama-se María José Gálvez e os contactos encontram-se na Internet. Até já participou num seminário do nosso Plano Nacional de Leitura. Por certo, conseguirá dar-nos algumas dicas. Aliás, penso em tudo isto e lembro-me do título do romance de Valter Hugo Mãe “A Máquina de Fazer Espanhóis”. Precisamos urgentemente de criar uma máquina dessas, não propriamente para fazer espanhóis, mas para fazer leitores como fazem os espanhóis. A verdadeira máquina de fazer espanhóis seria uma máquina de fazer leitores. E o exemplo dos nossos únicos vizinhos do lado não é o único que vale a pena conhecer – há outros por essa Europa fora. Nós somos bons em muitas coisas, mas não temos sido particularmente eficientes no que toca a criar leitores. Porque não aprendermos com quem o faz bem?
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