Visto o roupão e desço para a cozinha. Ponho água na cafeteira Bialleti, depois o café, enrosco a parte de cima da máquina e ponho ao lume. Em poucos minutos começo a ouvir o ruido do café a subir e um aroma maravilhoso enche a casa. As torradas saltam e ponho manteiga e compota. É este o meu momento preferido do dia. Vou acordando dando goles de café com leite e trincadelas de pão. O olhar vagueia ora por dentro ora por fora, tentando ver os pássaros pousados no limoeiro. Bem tento, mas eles escondem-se de mim. Comecei a por todos os dias migalhas sobre o muro, mas eles só parecem vir comê-las quando eu não estou. Até tenho uns binóculos poisados em cima da bancada da cozinha, preparados para observar os danados. Parecem duendes que se escondem de dia. Não espero mais por eles. Viro-me de costas para a janela e arrumo a loiça do pequeno almoço. Depois saio para o jardim e começo a arrancar folhas mortas das sardinheiras, dos jarros, a regar a rúcula, a mudar de vaso pequenas plantas que comprei em hortos, a apanhar do chão as inúmeras camélias já oxidadas e que me podem fazer escorregar. Entro na lavandaria e encho de roupa branca a máquina. Escolho um programa e deixo-a a trabalhar.
Ao entrar na cozinha reparo que ainda não coloquei numa jarra as flores que colhi ontem. Estão em água, numa garrafa de plástico decapitada. Deixo-as para mais logo. Subo as escadas e vou-me arranjar. O sol entra pela janela do quarto que é também a cabeceira da minha cama. Os vizinhos aproveitam para arejar as casas e há almofadas e cobertores poisados nas varandas. Arrumo o quarto e faço a cama com alguma dificuldade. Há coisas que é melhor a dois. Escolho uma roupa quente e confortável, mas também bonita, uma meias grossas, umas sapatilhas. Depois ponho os meus cremes e pinto os lábios. Por fim escolho uns brincos, anéis a condizer e um relógio. O dia vai ser passado em casa, estou em teletrabalho há mais de um mês e passo muito tempo sentada ao computador a escrever, a participar em reuniões, a fazer consultas por telefone. Mas mesmo trabalhando em casa não consigo vestir-me de qualquer forma. Tenho que estar bem arranjada para consultar os meus doentes. Mesmo por telefone. Faz parte da minha forma de estar no mundo. A Fly acompanha-me nesta minha disciplina e vou mudando o seu ninho conforme mudo de tarefa.
Agora são horas de a levar a dar uma volta pelo bairro. Ela pula quando me vê a descer as escadas com as sapatilhas calçadas e dirige-se para a porta da rua. Pego na trela e nas chaves de casa e partimos. Cá fora está frio, o chão está molhado da pouca chuva que caiu durante a noite. O sol alegra as casas, que são iguais, mas de cores diferentes. Passo pela azul claro, pela verde água, pela rosa, pela amarelo ocre, pela amarelo pálido, pela branca, pela cinza, pela branca descascada, pela amarela remoçada, pela rosa velho abandonada, pela verde que foi acabada de vender e ainda tem a placa da imobiliária, pela branca que está à venda depois da morte do dono, por todas as outras que conheço há mais de vinte e cinco anos, desde que para aqui vim morar. Este meu bairro foi construído no fim dos anos 50 do século vinte e é fruto de uma cooperativa de gente da pequena burguesia. O desenho das casas foi encomendado a um arquiteto jovem, Mário Bonito, professor na faculdade de Belas Artes do Porto (na altura os cursos de arquitetura, escultura e pintura eram ministrados na mesma faculdade, em São Lázaro). Parece que o Mário Bonito se inspirou no bairro Kiefhoek, em Roterdão desenhado pelo arquiteto holandês J. J. P. Oud nos anos 20 do século passado. Este arquiteto foi, entre 1918 e 1933, arquiteto habitacional municipal em Roterdão. Nesse período de tempo muitos trabalhadores estavam a migrar para a cidade, razão pela qual foi necessário criar áreas residenciais para os alojar. O que ele fez foi aliar a funcionalidade a uma estética progressista, praticando aquilo que foi chamado “funcionalismo poético”.
Mário Bonito tinha apenas 29 anos quando lhe foi encomendada esta obra e no verão de 1950 foi à holanda visitar o famoso bairro num Studebaker Champion, automóvel desenhado por um arquiteto americano. Foi com amigos, proprietários do carro, ainda não possuía carta de condução nem automóvel. A esposa não o pode acompanhar na viajem, pois tinha acabado de dar à luz um dos seus cinco filhos. Para a compensar, o arquiteto Mário Bonito trouxe-lhe de Paris um fabuloso casaco de vison, a três quartos, cuja maciez o seu filho Mário – que me contou esta história – ainda hoje recorda como das experiências mais envolventes junto da sua mãe que, já de si, era muito aconchegante e os mimava muito.
As casas são surpreendentemente modernas para a época, sobretudo as janelas, que vão de topo a topo das fachadas. A primeira vez que entrei numa destas casas o que mais me impressionou foi a luz. Parecem gaiolas de canários. As cores diferentes das fachadas tinham uma mensagem escondida. Significavam o pluralismo, em oposição ao tom cinzento do Estado Novo. A construção horizontal, com pequeninas pracetas e ruas largas faz com que as pessoas deste bairro se encontrem a passear as crianças ou os cães e vão estabelecendo relações de boa vizinhança e até por vezes de amizade. Outra particularidade deste bairro é que os nomes das ruas e das pracetas são de músicos ou compositores, daí este bairro ser conhecido por “bairro dos músicos”. Há várias gerações da mesma família a viverem em casas quase contíguas e é comum em fins de semana ensolarados vê-los a conviver no passeio em frente às casas e de porta aberta. Sempre que passeio com a Fly no jardim em frente a minha casa, lamento não existirem bancos para eu me sentar enquanto ela escolhe ervinhas para comer ou fareja a passagem de outros cães. Poderia também existir um parque infantil num bairro onde existem tantas crianças. Seria agradável ouvir os seus risos, gritos de excitação. Infelizmente o Mário Bonito não trouxe também essa inspiração da Holanda, onde é habitual nos dias de sol as pessoas virem com cadeiras tomar um café à porta de casa.
Mas o recreio acabou e tenho que regressar a casa. Sento-me na mesa da sala de costas para uma janela e de frente para várias outras. Vejo estrelícias e limões entrelaçados no meu jardim. Uma pomba cinza claro poisou no limoeiro e saltita de ramo em ramo.
O telefone toca. Um pediatra de um hospital distrital pede-me ajuda para fazer o diagnóstico a um doente. A descrição das alterações não me basta e peço para me filmar o doente e me enviar o vídeo. Agora com o vídeo já é mais fácil. Analiso os movimentos, paro, recomeço. Parece que já sei do que se trata. Telefono de volta e dou instruções, faço contas de doses de fármacos. Aguardo pela resposta. Parece que acertei no diagnóstico. O doente ficou bem. Atualmente, com a ajuda da informática e dos audiovisuais, muitos problemas médicos se podem resolver à distância. Outros não. Em medicina, todos os sentidos são importantes para a relação médico-doente. E uma consulta é mais do que fazer um diagnóstico. Aqui em casa, pelo telefone, vou ouvindo as pessoas a contarem as suas vidas. Tem sido fácil com os doentes que conheço muito bem. Muitos, talvez mais de metade, estão também em isolamento como eu. Agradecem a consulta telefónica, gostam de saber que também eu estou por casa, mas a trabalhar. A doutora está bem, perguntam-me. Olhe por si, olhe por si, dizem alguns.
Mas é difícil estar por casa e manter um ritmo de trabalho, não cair num desalento, num “não vale a pena que ninguém me vê”. A felicidade é uma disciplina, digo todos os dias a mim própria. Manter os rituais é obrigatório. Lavar-me, tratar da pele, vestir-me bem, fazer algum exercício, arrumar e limpar a casa, cozinhar três refeições diárias, não ver televisão durante o dia, escrever e ler um pouco. Estas são as coisas obrigatórias e constantes. Existem ainda os pequenos nadas que alegram o meu dia. Os recortes, os desenhos, os bordados, a decoração de um canto da casa, fazer uma pulseira ou um colar, as minhas compotas, a jardinagem. É isto que me falta quando viajo. Os meus pequenos nadas que são a alegria da minha vida. Talvez a solução para mim fosse viajar de autocaravana. Nessa altura poderia viajar e cozinhar umas sopas, levar comigo a Fly e todo o material para fazer os meus trabalhos manuais. A ideia é para muitos considerada muito “freak”, mas adequa-se muito bem à minha maneira de viver. Quando vou para Cabo Verde trabalhar levo sempre comigo alguns trabalhos para fazer, mas falta-me sempre a minha cozinha. Tenho uma amiga que sente como eu falta da sua sopa quando viaja pelo estrangeiro. “Um dia – disse-me – vou começar a levar comigo um fogareiro e uma panela e começar a fazer sopa nos quartos de hotéis. Aposto que quando abrir a porta vai estar uma fila de gente a pedir uma sopinha”.
Pequenos nadas, tão importantes à medida que envelhecemos. A nossa cadeira preferida, a nossa almofada de dormir, os nossos rituais do dia a dia, os nossos trilhos.
Quando somos novos, o ritmo de acontecimentos de coisas novas é acelerado, há novidades quase todos os dias, surpresas, emoções. Mas à medida que envelhecemos esse ritmo diminui, ou porque nada de novo acontece ou porque deixamos de nos emocionar com as coisas. “Quem tudo viu…” como diz Jorge de Sena. Começamos então a retirar prazer daquilo que conhecemos bem, apegamo-nos às coisas, gostamos de reler livros, rever filmes, lugares e pessoas. Já não temos tempo a perder. Preferimos um velho amigo a um brilhante recém-conhecido. Uma caminhada no Gerês a umas férias nas Maldivas. Uma sopa caseira a ostras e champanhe.
A minha mãe, que tem noventa anos, disse-me outro dia que eu estou a ficar parecida com aquilo que era em criança. Eu diria que estou a voltar à simplicidade. Em pequena não gostava de doces. Nas festinhas de aniversário comia bicos de pato com fiambre e os outros salgadinhos se calhasse haver. Ao pequeno almoço e ao lanche, comia sempre o mesmo: pão com manteiga. Aliás, durante muitos anos, antes de ter a preocupação de engordar, gostava de terminar as refeições com um bocadinho de pão. Quando me perguntam quais os alimentos sem os quais não consigo passar respondo: café, leite, pão e manteiga. Acrescento: manteiga com sal, que a outra é um desconsolo. Hoje, época de fartura, de hipermercados repletos de comidas processadas, cada vez mais busco a simplicidade e procuro o autêntico. Pão escuro e com sementes, frequentemente feito por mim, iogurtes naturais feitos em casa, compotas dos frutos do meu pomar, sopa de vagens ou penca, que colhi pelo fresco da manhã, tomates coração de boi que vi crescer. Como muito peixe, ovos e frangos caseiros comprados na aldeia e raramente carnes vermelhas. Fui simplificando com a idade. Um bom azeite, orégãos, louro, tomilho, alecrim, sálvia, pimenta em grão, cravinho, gengibre, temperam quase tudo.
A vestir também vou simplificando. Na verdade, o meu gosto tem sido sempre o mesmo. Apenas vou substituindo as peças gastas ou que já não me servem por uma nova edição um pouco mais atualizada.
Também gosto de gente autêntica e simples. Com simples não quero dizer simplória. Quero dizer honesta e descomplicada, sem paranoias ou rancores. Gente que se permite mostrar o que na verdade é.
Este é o luxo de ficar velho: permitirmo-nos mostrar quem somos.
Ainda tenho alguns anos de trabalho à minha frente, mas perdi o medo de me reformar. Já não necessito de agitação à minha volta, de reconhecimento, de aprovação. Sei quem sou e basto-me. Corrijo. Necessito dos meus pequenos nadas. Café com leite e pão com manteiga.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.