“Um dia, quando comprarmos uma vivenda, podes ter um cão”. Foi a frase que mais ouvi ao longo da minha infância e que me fez sonhar com essa possibilidade, pois, dentro de portas, não havia lugar para um ser peludo, por mais fofo que pudesse ser. Esse dia acabou por nunca chegar, mas essa infelicidade acabou por me fazer refletir sobre a afirmação dos meus pais e estudar um pouco mais o assunto. Tanto, que acabei a estudar para ser veterinário.
Não se sabe ainda exatamente, nem com certeza, quando e de que forma se iniciou esta ligação que nos fez ficar tão próximos e até dependentes. O que terá começado enquanto dependência unilateral, dos ancestrais dos cães face ao ser humano, transformou-se paulatinamente numa dependência mútua, tenha sido por guarda, companhia, caça ou inclusivamente entretenimento. Provavelmente, a primeira terá dado o mote para uma simbiose gradual, que nos leva a denominarmos, hoje, o cão enquanto melhor amigo do ser humano.
Neste trajeto e à nossa tradição, moldámos uma espécie à imagem das nossas necessidades. Assim, aquele que outrora foi lobo (ou algo muito próximo do que designamos enquanto lobo), deu origem a uma ramificação, uma subespécie, o canis lupus familiaris, vulgo cão.
Naturalmente, nos primórdios, o seu lugar seria satélite, oportunista das nossas sobras de alimento. Mais tarde, terá sido importante no alerta relativo a predadores e intrusos, sendo oportunamente incluído enquanto apoio da tribo. Para tal, ajudou ser um animal gregário, com forte sentido de comunidade, na qual cada um ocupa a sua posição numa hierarquia bem definida. Daqui até à sua inclusão e diversificação de funções, foi um “ápice”. Afirmou-se como elemento fidedigno de caça, fiel à família, protetor e obediente. Um de nós.
A evolução costuma estar associada à capacidade de adaptação do ser ao meio. Aqueles cujas características mais se adequam ao ambiente observado, prosperam e reproduzem-se. No entanto, no caso do cão há uma nuance, na qual a sua evolução mais recente se dá também pela seleção artificial, por nós determinada.
Desta feita, várias características foram progressivamente selecionadas, pelos mais diversos motivos e tendo em conta o que nos convinha a cada momento. Independentemente das motivações, certo é que o cão começou a fazer parte do nosso lar, das nossas casas. Pela altura em que isso aconteceu, muitas seriam ainda cabanas e muitos cães terão ajudado a aquecer famílias inteiras nas alturas de maior frio. Não era infrequente os animais dormirem lado a lado com as pessoas, inclusivamente os animais de produção. No caso em concreto e dada a crescente proximidade, uma seleção mais minuciosa levou a que tenhamos hoje a numerosa paleta de raças existente, algumas por enorme egoísmo da nossa parte…
Voltamos agora ao título deste texto e convido-vos a debruçarmo-nos mais atentamente na minha pergunta. Afinal, qual é o lugar do cão? Obviamente não posso dar uma resposta global, dado as óbvias diferenças entre raças. Não obstante, posso afirmar que para a maioria das mesmas, incluindo muitos dos “rafeiros”, o seu lugar é em casa, connosco. Os cães também sentem frio, medo e necessidade de estar perto. Poder-me-ão dizer que sobrevivem na rua, é verdade. A isso respondo que um sem-abrigo também sobrevive na rua. No entanto, “sobrevive” é a palavra chave. Sobrevive sim, mas sem condições dignas e sem conforto.
Para a maioria dos cães, o seu lugar não é na rua e acima de tudo, o seu lugar não é o abandono. Ao longo de vários milénios transformámos um lobo num cão, esquecendo-nos por vezes que ele não torna novamente a lobo, pelo menos, do dia para a noite, nem tão pouco o passa a ser nos momentos em que nos dá mais jeito.
Por isso, quando decidimos ter um cão devemos lembarar-nos que ele também sente. Não apenas frio, calor ou fome, mas também alegria, ansiedade e medo. Resta-me dizer que aquele que sente medo, também sente amor.
O lugar do vosso cão é convosco, assim tenham amor para retribuir.
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