No começo dos anos 90, no recreio da escola, pavimentado em saibro daquele próprio para esfolar os joelhos, jogávamos uma versão estúpida da apanhada, que consistia em perseguirmos um colega, até lhe tocarmos e dizermos “tens sida”, para depois desatarmos novamente a correr, fugindo do sidoso, que tentava caçar os colegas como um zombie do videoclipe do Michael Jackson. Naquele tempo, em que tanto se cantarolava o “Amor d’Água Fresca”, da Dina, como se copiavam cassetes VHS com as performances sexuais de Tomás Taveira, poucos se preocupavam com a discriminação dos doentes e estigmatizá-los até aparentava possuir a vantagem de manter os jovens afastados de comportamentos de risco – poucos pais se importariam de ver os filhos, horrorizados, temendo o VIH. Não havia nada pior do que ter sida e falava-se como nunca na dependência de drogas.
Em 2021, felizmente, as crianças nunca ouviram falar em seropositivos, mas também já não esfolam joelhos. O mundo mudou sobremaneira em duas ou três décadas e hoje os novos comportamentos de risco ainda se encontram longe de estarem enraizados nas cabeças dos pais, como estava a noção do perigo representado pelo consumo de drogas há trinta anos. Um dos mais preocupantes é o da dependência dos ecrãs.
Na crónica anterior, destaquei que, nos países ocidentais, as crianças de 2 anos passam em média 3 horas por dia em frente a ecrãs, as que têm idades entre os 8 e os 12 anos perto de 5 horas e os jovens entre os 13 e os 18 quase 7 horas por dia, e ainda que estudos apontam estas gerações como as primeiras nas décadas recentes a terem valores de QI inferiores aos dos pais. Entretanto, chegou-me às mãos um estudo da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa que concluiu que, durante o primeiro confinamento, a atividade física e do brincar livre das crianças decresceu 72% e o contacto com os ecrãs aumentou quase na mesma proporção, 71%. A Organização Mundial de Saúde recomenda que o contacto de crianças com ecrãs não deve existir até aos 2 anos, não deve ultrapassar 1 hora dos 2 aos 3 anos, 2 horas dos 3 aos 5 anos e não mais de 3 horas dos 5 anos em diante. Em suma, há cada vez menos dúvidas de que o contacto excessivo com ecrãs condiciona o desenvolvimento motor, social e intelectual das crianças.
Foi, por isso, com ânimo que encarei a recomendação de inclusão da dependência dos ecrãs no Plano Nacional para a Redução dos Comportamentos Aditivos. Apesar de resultar de uma realidade preocupante, quero crer que esta intenção pode constituir um primeiro passo para, no domínio das políticas públicas, se tomarem medidas sérias no que toca ao incentivo à troca dos dispositivos eletrónicos pela atividade física e pela leitura de livros – e, aqui chegado, quero dar conta de outra notícia que me entusiasmou.
Trata-se de uma iniciativa do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, onde, no contexto do mestrado em Medicina, acaba de se reconhecer a importância da palavra, do livro e da leitura. Os futuros médicos – eles próprios já pessoas dos ecrãs – vão poder escolher uma nova cadeira: «Introdução à Poesia», lecionada pelo poeta e também médico João Luís Barreto Guimarães. O regente da disciplina, que já tinha tido experiências isoladas de ensino de poesia, está a preparar lições que não descuram o cânone, mas que de igual modo tocam temas ligados à medicina, como anatomia, doença, tratamento ou hospitais. O objetivo é resgatar os alunos da rotina da memorização de termos científicos, estimulando o lado interpretativo e introduzindo o subjetivo naquilo que é normalmente objetivo, de forma a cultivar a empatia e o humanismo que todo o médico deve ter. O que poderá isto fazer por um jovem clínico? O que será um médico que desenvolva estas valências? E o que fará pelos seus pacientes? Poderá a poesia ajudá-lo a entender melhor a experiência transmitida por um doente, ao invés de compreender o corpo humano como uma máquina que ou funciona ou avaria?
Hoje, e sempre, a palavra, o livro e a leitura podem constituir ou integrar soluções para problemas prementes. Haja vontade.