Mais uma vez, hoje dei por mim sem saber em que dia da semana estamos. Confinado a casa, nada do que antes marcava os meus dias tem lugar. À exceção de aulas e uma ou outra reunião online, tudo o que fazia fora de casa, indo aqui e ali, reunindo, almoçando ou jantando algures, tudo isso desapareceu. A agenda parece uma folha quase imaculada.
É verdade que nada parou; o corrupio de mails, de respostas e decisões pouco ou nada abrandou. Mais, com o contexto e necessidade de dar respostas, criei novas tarefas que me obrigam ainda a mais trabalho. Mas o viver o tempo desta forma é diferente.
O tempo parece ter-se virado para a valorização dos gestos, do que é mais sublime, mais importante. Este é um tempo propício para aligeirar carga de ritmos, de hábitos, de dependências que nos tolhiam a liberdade. Perdemos as boias que, em muitos casos, eram apenas vícios de gesto, de palavra, iludindo cada um num emaranhado que, afinal, se pôde desembaraçar de forma quase imediata mostrando como era artificial.
É um contexto único que nos mostra como um certo back to basics é possível e, acima de tudo, desejável. Todos vemos mais filmes, mais séries. Todos telefonamos mais a quem nos é querido. Todos temos, hoje e só hoje, milhares de visitas virtuais a museus gratuitas, assim como milhares de excelentes concertos à distância de um simples gesto. De forma generosa, as instituições culturais e os artistas vieram para a comunidade com o que fazem de melhor.
É a oportunidade para alterar a ordem das prioridades e dar espaço a uma forma de vida mais estética, mais equilibrada. Atribui-se a Goethe uma célebre frase repetida um pouco por todo o lado, mas não vivida a fundo. Diz ela:
“Todos os dias devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito e, se possível, dizer algumas palavras sensatas.”
Quantas vezes me tenho lembrado nestes dias daqueles de nós que passam pelos dias com uma caneca de cerveja na mão e o olhar num écran a ver um grupo de atletas pagos a peso de ouro a correr atrás de uma bola ou, pior, a ouvir os comentários de um grupo menos rico e menos atlético de opinadores.
Que é feito dessa gente que se arrastava, até há poucas semanas, atrás de uma qualquer mesa de café, gritando e discutindo a profundidade de um “cartão amarelo”? Fechados em casa, sem futebol, verão os ditos museus que hoje nos permitem viagens virtuais às suas coleções? De que forma a vida estética de Goethe se alinha com a vida deles?
Se a arte, a música e a literatura são formas de libertação, de pensamento e de espiritualidade, como a desenvolver em meios tão agrestes e tão pouco preparados para ela?
Que a confinação, de alguma maneira, nos retire dos ecrãs do futebol e nos permita ouvir uma boa música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito. Tudo isto num dia e nos outros todos a seguir.
Só isto nos faz Humanos.