Durante este ano, a Disney revelou o seu posicionamento no que diz respeito à produção de conteúdos inclusivos e promoção de histórias que reflitam a diversidade da sociedade contadas na primeira pessoa. Em maio, a Disney+ lançou a curta de animação “OUT”, um filme que apresenta, pela primeira vez, duas figuras principais que são gays e cuja história gira em torno de questões comuns da vida de namorados homossexuais. Este filme permitiu que rapazes e homens se vissem justamente representados numa animação produzida por uma indústria que regularmente produz de estereótipos de género.
Agora, em Dezembro, a Pixar/Disney+ estreia em Portugal o filme de animação “SOUL“, o primeiro da Pixar e um dos poucos da indústria do cinema norte-americano que tem uma figura negra como personagem principal. O filme centra-se na vida de Joe Gardner, um afrodescendente americano que é professor de música e tem a oportunidade única de ser um grande pianista de jazz. Contudo, um contratempo leva-o a um lugar etéreo, noutra dimensão, onde as almas vivem antes de se manifestarem no planeta Terra. Neste lugar fantástico, Joe junta-se a 22, uma alma precoce que não entende o encanto da experiência humana e o pianista procura desesperadamente mostrar a esta jovem alma a magia da vida na Terra e de ser-se humano. O atorJamie Foxx faz a voz de Joe e esta escolha caiu que nem uma luva. Seguramente que as vozes de Joaquin Phoenix ou Leonardo diCaprio não teriam o mesmo efeito de integridade, coerência e consistência com a personagem de Joe Gardner. A Pixar, reconhecendo a realidade do racismo nos Estados Unidos e dentro da indústria cinematográfica, criou um gabinete de Diversidade e Inclusão que ajuda a pensar e criar conteúdos e narrativas que, por um lado não perpetuem estereótipos de género e étnico-raciais (entre outros) nos filmes, e que garantam a participação de uma pluralidade justa de papéis e talento que não privilegie sistematicamente a presença de pessoas brancas e heterossexuais como tem acontecido. E por que é que o fazem? Porque perceberam que ao longo do tempo procederam de forma injusta, parcial e hegemónica ao perpetuarem mitos e narrativas enviesadas sobre certas minorias e não permitindo que as suas histórias fossem contadas na primeira pessoa. A grande maioria dos filmes e das animações assentam em papéis de personagens heterossexuais e brancas, e isto justifica-se porque uma maioria branca heterossexual em lugares de decisão esquece-se de olhar para o lado, ver e incluir, nos projetos, pessoas que fazem parte do imenso e complexo painel social que raramente são representadas nos ecrãs, e quando são representadas surgem crivadas de clichés.
O estereótipo étnico-racial, como pensado pelo intelectual indiano-inglês Homi Bhabha, vinga ao repetir-se vezes sem conta apesar da constante mudança da história e das conjunturas discursivas. O estereótipo, enquanto estratégia discursiva, vive da fixidez e da repetição para manter uma certa ordem hegemónica que resiste à mudança.
“SOUL” procura colmatar esta falha ao dar vida e voz a Joe, um negro que não foi pensado somente por brancos. Para o efeito, a equipa Pixar convocou mais de vinte pessoas negras e o ex-jornalista multimédia Kemp Powers para pensarem no perfil das personagens sem caírem em clichés ou manifestações inconscientes de discriminação. Após este processo, Powers foi convidado a ser co-realizador de “SOUL” (ainda que o site português da Disney não o mencione na ficha técnica) e foram convidados os artistas negras/os Jamie Foxx, Questlove, Angela Basset, Daveed Diggs, entre outros, para darem voz às personagens. Em França, Joe Gardner foi assumido por Omar Sy, e o Brasil convidou o ator negro Jorge Lucas para dar voz a Joe e a cantora de jazz negra Luciana Mello para assumir Dorothea.
E em Portugal, qual foi a decisão tomada? Foi uma decisão que fica muito aquém da inclusividade exigida para um filme com este ADN. As personagens principais de “SOUL, uma aventura com alma” foram assumidas pelas vozes dos profissionais Jorge Mourato (Jamie Foxx na versão original), José Nobre, Mónica Garcez, entre outros…brancos a fazerem de negros. Mais um episódio de blackface, mais um tiro-no-pé, que acredito que tenha acontecido de forma inconsciente…. mas esta inconsciência não pode continuar a acontecer sem pedidos de desculpas formais nem indignação pública. Pensemos alto: sabendo que esta é a primeira animação da Disney com uma personagem principal negra cuja voz foi dada intencionalmente a Jamie Foxx e a outros profissionais negros, isto não faz soar campainhas às equipas portuguesas? Em Portugal fez-se uma escolha hegemónica – da qual a Pixar procurou fugir ao trabalhar com uma equipa plural e diversa – que é reflexo da mentalidade neocolonial sistémica que ainda existe. Tão sistémica que os profissionais da indústria passaram por cima dos valores em questão e ninguém percebeu o óbvio. Tal é a dimensão desta cegueira.
Agora é tarde para escolher as pessoas certas para a dobragem, mas esperemos que esta má prática sirva para a indústria de televisão, audiovisual e cinematográfica portuguesa perceber que a discriminação e a invisibilidade são reais e aconteceram de forma flagrante, revelando-se não como um caso pontual mas como um exemplo entre muitos que se verificam nesta e noutras indústrias nacionais.
Esperemos que este incidente seja o ponto de partida para uma mudança urgente a acontecer na nossa sociedade, havendo humildade para perceber o erro e assumir que não deve repetir-se. Há que transformar os modos de pensar e de agir de equipas e empresas onde os valores da diversidade e inclusão devem ser colocados em cima da mesa, pensados e planeados intencionalmente e de raiz com pessoas que representam o variado mosaico da sociedade, evitando-se cair na padronização, na invisibilização de pessoas e em discriminações.
A presença e participação do talento de pessoas negras na indústria cinematográfica é reduzida e muitas vezes estereotipada, seja nos Estados Unidos ou noutro país ocidental, ainda que não faltem atrizes e atores, argumentistas, técnicos e realizadoras/es para provarem o contrário. E Portugal não é exceção neste âmbito. Há muito talento dentro de fronteiras.