2 milhões e 315 mil portugueses deprimidos e ansiosos, muito mal contados e pior diagnosticados, antes do coronavírus. É um atestado de perturbação mental a quase um quarto do País, o segundo pior na Europa, que nos custa 3,7% do PIB ao ano – 6,6 mil milhões em cuidados de saúde, segurança social e perdas de produtividade. Face a este descontrolo pandémico, a reação pública só poderia ser exponencial. Mas não. O Estado português comporta-se perante as nossas mentes doentes como Trump reage à sua infecção com Covid-19: com gigantesca irresponsabilidade e um cocktail de comprimidos que mascaram os sintomas e (sozinhos) não curam coisa nenhuma. Em Portugal, o melhor que o 1 milhão e 668 mil ansiosos e os 800 mil deprimidos oficiais podem esperar é uma pílula mágica: um antidepressivo de manhã, outro à noite, e ansiolíticos sempre que o desespero apertar. Receitados via de regra pelo médico de família que é clínico geral, que não teve um minuto de estudo especializado nas sinapses do cérebro e que tem no máximo 30 minutos para nos ouvir os tormentos e diagnosticar-nos uma perturbação mental como se fosse uma unha encravada. O Serviço Nacional de Saúde é para a saúde mental como uma cadeia de fast food, só serve fármacos prensados numa sanduíche açucarada e carregada de artifícios – e engorda-nos a mente com a perpetuação da doença e o vício nos comprimidos. Se aos menos servissem um comprimido colectivo contra o preconceito ou anticorpos sintéticos que combatessem o estigma, talvez se abrisse caminho para a cura. Porque a depressão e a ansiedade não são mero desarranjo químico, e só se curam indo à raiz do trauma.
É da natureza humana abreviar caminho e acreditar em pílulas mágicas. Quem vive aprisionado na engrenagem insana da depressão e da ansiedade conhece de cor a repetição do desespero e o culto do comprimido. Acorda-se penosamente de uma noite de insónia, sem qualquer esperança que as pernas nos tirem da cama e nos olhos um caleidoscópio de fracassos, pessimismo, culpa, auto-massacre e a promessa segura de que hoje voltaremos a falhar. A dor é tal que a estratégia pré-definida pelo cérebro é a dormência e desiste-se de enfrentar o dia. O vácuo estaria garantido, não fosse o instinto de sobrevivência a debater-se com a lista de tarefas diárias e entramos em looping: uma desproporção extrema de medo, insegurança, tensão até ao (ataque de) pânico. A armadilha é esta: não se conseguir fazer nada numa simultânea sobrecarga de ter de fazer tudo. Após dias seguidos desta rotina desgraçada, toma-se qualquer poção que prometa a magia de quebrar o ciclo. E a cura torna-se mais doença.
Em Portugal, o SNS integra meros 631 psiquiatras e 250 psicólogos – com remendos coronavíricos para a linha Saúde 24. Esperam-se três meses para uma consulta de psiquiatria muito prioritária, mas sem prioridade o deprimido espera 4 anos entre o início dos sintomas e o princípio do tratamento – o ansioso aguenta 3 anos. Resultado: 65% dos pacientes não recebe qualquer tratamento. Garanto-vos que não é possível ultrapassar este dueto maldito sem um arsenal de métodos, de tentativas terapeuticas, de muitas horas de psicoterapia, de aliados, até de fé para quem acredite. Eu e a OMS, que já há muito crítica a pobreza de recursos humanos e a sustentação farmacológica do sistema de saúde mental português. Os medicamentos só podem ser muleta temporária, escolhidos com intransigente parcimônia por um psiquiatra e enquanto um psicoterapeuta nos esmiuça ao detalhe as causas e curvas tortas da mente. Mas são a regra solitária: Portugal é o país da OCDE com maior consumo de psicofármacos – campeões dos ansiolíticos, levamos o bronze nos antidepressivos. E o governo não é nosso aliado na guerra: se esta pandemia mental nos custa 6,6 mil milhões por ano (3,7% do PIB), o Estado responde investindo a cada orçamento 400 milhões na saúde mental.
Enquanto a depressão ansiosa me infernizou década e meia de vida, foram-me receitados 7 antidepressivos diferentes, 8 ansiolíticos distintos e uma mistura exótica de outras pílulas que fariam as magias coadjuvantes. Um dia, sentindo-me mais toxicodependente do que ajudada, procurei um psiquiatra que me calendarizou o desmame: um ano a diminuir doses, com suores frios e terrores nocturnos. Foi a última etapa da minha cura. O psiquiatra era privado, como todos os que me seguiram e o psicoterapeuta que me ensinou a salvar-me. A única vergonha que me resta é desta sociedade estigmatizante e de um Estado que nem contas sabe fazer, preconceituoso dourador de pílulas. Este sábado é o Dia Mundial da Saúde Mental, tão escassa a todos.