As indignações demoram, hoje, o tempo de um fósforo – apesar da chama vigorosa, são depressa consumidas e substituídas por outras, com a mesma duração efémera. Se, em boa verdade, a maior parte das polémicas não merece mais do que esses cinco ou seis segundos de atenção, outras há que não deviam cair no esquecimento rápido e na fosso da normalização imediata, como se aquilo que antes parecia inadmissível pudesse depois, pelo cansaço da polémica, passar a ter justificação e a ser considerado normal. A indignação manifestada por tanta e variada gente por causa da subalternização do nome de Rosa Mota face ao de uma marca de cervejas no “seu” pavilhão do Porto é uma daquelas que não devia ser consumida à velocidade de um fósforo. Bem pelo contrário: devia crescer, incomodar-nos a todos, obrigar-nos a pensar sobre quais são os limites da mercantilização da sociedade e quais os símbolos que devemos preservar como exemplo na nossa memória coletiva.
Esta não é uma indignação estéril. É uma indignação que levou, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa a cancelar a sua presença na inauguração, poucos momentos depois de saber que Rosa Mota não iria estar presente, o mesmo sucedendo com todos os vereadores da oposição no Porto, mas também de académicos e outras figuras da cidade. É uma indignação que, embora de forma sussurrada, também fez chegar ao círculo de Rosa Mota muitas mensagens de apoio e de solidariedade da parte de governantes, eurodeputados, banqueiros, embaixadores, artistas e personalidades de todos os espectros políticos. É uma indignação que devia ter consequências.
Comecemos pelo princípio: não foi Rosa Mota que, em 1988, pediu à Câmara do Porto para atribuir o seu nome ao então Pavilhão dos Desportos, erguido no local onde antes existiu o Palácio de Cristal. A iniciativa foi do então presidente da Câmara do Porto, o social-democrata Fernando Cabral, com o voto unânime de todos os partidos. Era uma homenagem à maratonista pela conquista do título olímpico, nos Jogos de Seul, exatamente como, alguns anos antes, Lisboa tinha feito ao atribuir o nome de Carlos Lopes ao então Pavilhão dos Desportos – que ainda lá se mantém, incólume, mesmo depois do edifício ter sido sujeito a uma profunda remodelação e modernização.
As homenagens eram – e continuam a ser – perfeitamente justificadas, até porque a dimensão de Lopes e de Rosa para o imaginário e a identidade nacionais foram muito para além das suas espantosas e pioneiras vitórias atléticas. Em corridas longas, a exigir grande tenacidade e perseverança, eles foram os primeiros a demonstrar que os portugueses, afinal, também podiam ganhar como os outros, assim lhes dessem condições semelhantes de preparação e de treino. Num Portugal ainda a balbuciar a palavra democracia e a ensaiar os primeiros passos na Europa, Lopes e Rosa representavam o melhor de todos nós, enchiam o País de orgulho e davam-nos esperança para acreditar num futuro menos fatalista e mais risonho.
No caso concreto de Rosa Mota, as suas vitórias pioneiras num país que ainda lidava mal com o desporto feminino e a sua voz sempre disponível para apoiar causas cívicas relevantes foram determinantes para a valorização do papel das mulheres na vida pública portuguesa.
Na nossa memória coletiva, ter o nome de Rosa Mota num pavilhão importante da sua cidade possuía um significado muito maior do que o reconhecimento imediato pela sua medalha de ouro olímpica (mesmo que tivesse sido a primeira portuguesa a consegui-lo). Era uma forma de perpetuar o simbolismo das suas conquistas e erguê-la como exemplo para as gerações futuras. É essa umas das funções da toponímia: homenagear quem se destacou e preservar o nome de quem possa inspirar ou servir de exemplo para outros.
Há, no entanto, quem ache que os interesses imediatos são mais importantes do que a preservação de certas memórias. Ou até quem pense que é possível conciliar o que é inconciliável, como se fosse tudo igual, misturando símbolos e conceitos que nada têm a ver uns com os outros.
Se quisermos ser completamente frios e analíticos, não há nada a opor que, sem dinheiro para efetuar as obras de reabilitação do Pavilhão Rosa Mota, a Câmara do Porto tenha decidido abrir um concurso público e adjudicar a empreitada a privados, a quem depois entregaria a concessão do equipamento durante 20 anos. Como também é admissível que, prestes a concluir as obras, esse consórcio tenha procurado financiamento através da venda do nome do pavilhão. Com contas simples, mas generosas para quem investiu: o consórcio pagou oito milhões pelas obras, vai pagar 20 mil euros por mês de renda, à Câmara, durante duas décadas, pela exploração do espaço (cerca de 4,8 milhões de euros) e recebe 20 milhões de euros da SuperBock pela venda do nome.
O que já não se compreende mesmo é isto ter sido feito sem a devida transparência. Resultado: o “acrescento” ao nome, decidido pela Câmara do Porto (apenas com os votos dos vereadores de Rui Moreira), em novembro de 2018, transformou-se, cerca de um ano depois, no nome principal – e de forma garrafal, relegando o de Rosa Mota para o nível de subtítulo.
A campeã olímpica (um título que fica para toda a vida) afirma que só num momento muito próximo da inauguração é que se apercebeu que tinha sido “enganada”. O presidente da câmara, Rui Moreira, insiste que a toponímia foi mantida e que até, pela primeira vez, o nome de Rosa Mota aparece inscrito na fachada, embora em letras pequeninas, quase esmagadas pelas que dizem SuperBock Arena.
O inegável é que, no desequilíbrio dos nomes, ganhou o negócio e perdeu o exemplo. É isto que queremos como memória de Portugal?