
D.R.
A Avenida da Boavista é a avenida mais comprida de Portugal. Mais ao menos a meio, do lado esquerdo de quem sobe, apresentava-se imponente o Centro Comercial Dallas. Durante anos, os mais importantes da vida de quem nasceu no final dos anos 70, representava uma espécie de Shangri-la onde desaguavam todas as carências culturais de quem nasceu, de certa maneira, sem país, sem país pleno, em tudo quanto uma região administrativa qualifica para merecer tal epíteto. O Dallas chamava-se assim, Dallas, e cobria-se de majestosa fachada em espelho, em honra da famosa série americana homónima. No genérico da dita série, que narrava as aventuras e desventuras dos abastados Ewing, o reflexo dum helicóptero luzia na fachada espelhada dum arranha-céus. Na fachada do nosso Dallas o visitante apenas veria devolvida a sua própria imagem, mas mesmo assim compensava. Era questão de não olhar demasiado de frente para tão leal, nobre e invicto Taj Mahal. Eu rumava ao Dallas para me abastecer de cultura. CD, jogos de computador e revistas de música. Logo à entrada, à esquerda, ficava a loja de discos, Rolls Rock. O comércio funcionava ao balcão, num processo que se desenrolava como uma versão arcaica do logaritmo do Spotify. O dono, duma simpatia e duma cultura musical assustadoras, sabia perfeitamente que se o cliente gostava de Black Crowes, então também iria gostar de Blind Melon. Não falhava. Tanto que deixava levar os discos para experimentar, trocaria se não fosse do agrado. Nunca era preciso. Mais adiante ficava a JMS, de jogos. Folheava-se uma capa com os títulos em voga, Last Ninja, Mr. Wino, Into The Eagles Nest, Green Beret, e uma cópia pirata era feita ali à nossa frente, no momento.
O senhor da loja era sisudo mas eficaz, presumo agora à distância que JMS fossem as iniciais do seu nome, talvez José Manuel Silva, sei lá, parecia o personagem principal do Alô Alô mas de bigode mais farto. As cassetes eram pirateadas ali, à frente do cliente, seriedade e profissionalismo acima de tudo. Mas há todo um Dallas que eu nunca vi. Não tinha idade, e além disso tinha medo. Era a chamada “Ala Norte”. Quão incrível isso é? Uma zona dum shopping a evitar, menos bem frequentada, toda uma West Side Story dentro dum centro comercial. As mães avisavam, tudo em volta advertia: cuidado com a Ala Norte.
Claro que era lá que ficava o melhor que o Dallas deixará para a história: o Splash, um bar. O nome e os respetivos adornos estéticos invocavam todo o imaginário West Coast que acabaria por resgatar toda a nossa costa: qualquer imaginário atlântico de que o nosso mar há de ter tudo um dia foi atualizado para ornamentos invocativos de surf, Malibu, Havai e parafina. O Dallas fechava às horas normais, mas a Ala Norte funcionava noite dentro. Entrava-se por trás. O Splash tinha música ao vivo e foi morada de mitos e lendas que a história há de sufragar condignamente. Dada a proximidade com o Hotel Meridien, que alojava as estrelas que atuavam no Coliseu, toda a gente passou pelo Splash. O Chico Buarque saiu de lá em braços. A Elba Ramalho era uma habituée. Certa vez o porteiro, zeloso do bom ambiente da casa, terá tentado vedar a entrada a dois ciganos, a quem mais tarde o gerente terá ido desculpar-se: eram o Paco de Lucia e o Jaco Pastorius. Foi lá que o Rui Veloso mostrou aos amigos, pela primeira vez, as músicas do Mingos & Os Samurais, num concerto clandestino. Eu nunca lá fui, não tinha idade ainda. O Splash acabou por fechar. As lojas foram fechando uma a uma, o Dallas fechou também. Envolveu umas trapalhadas na câmara, umas licenças, papelada que nunca se resolveu. Durante anos a fio, já o Dallas extinto, uma pequena lojinha de um eletricista ainda lá funcionava, na clandestinidade, no meio de ruínas, enclave último de um tempo ido. Mas também essa fechou. O edifício ainda lá está, teimoso e imponente. Passei por lá há tempos. Olhei de frente e como aquilo é em espelho, tudo o que eu vi foi a minha própria imagem, meio sem graça.
(Crónica publicada na VISÃO 1364 de 25 de abril)
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