Num mundo cada vez mais conectado e globalizado, é interessante perceber que a governação, de recursos e ecossistemas globais, tais como a Internet, a Atmosfera, os Oceanos, o Espaço, bem como as políticas públicas ligadas à saúde, segurança, riscos e finanças mundiais, tende a caminhar para um modelo de tomada de decisão envolvendo as várias partes interessadas (vários stakeholders), que não pode ser tratado só a nível local ou equacionado só com governos.
É atualmente comumente aceite que a nova onda de inovação tecnológica irá trazer mudanças mais radicais nas nossas economias e sociedades do que aquelas que já ocorreram com a expansão das TIC[1]. Isso inclui desenvolvimentos nas “tecnologias emergentes e exponenciais” tais como inteligência artificial, aprendizagem automática (machine-learning) e robótica avançada, tomada de decisão com base em megadados (big data) e algoritmos, realidade virtual e aumentada, decentralized ledger technologies como blockchain, veículos autónomos, a Internet das Coisas e computação quântica.
À medida que estas tecnologias são cada vez mais prevalentes, as economias e sociedades tornam-se mais vulneráveis à disrupção dos sistemas online de que dependem. Isto traz importância renovada a matérias como a segurança, e às relações entre governos, setor privado, comunidades técnica e académica e cidadãos. Todos têm de cooperar na construção de um ambiente favorável à inovação que proteja os direitos dos indivíduos, promova a paz, e assegure um avanço contínuo para o desenvolvimento sustentável, prosperidade económica, equidade social e sustentabilidade ambiental, num contexto de mudanças tecnológicas rápidas e imprevisíveis.
A Governação da Internet
A fase da perceção geral que há um ambiente multistakeholder na governação da Internet dá-se com a 1.ª fase da Cimeira Mundial da Sociedade da Informação (WSIS – World Summit on the Information Society) realizada sob os auspícios da ONU, em 2003, onde os setores público e privado, academia e sociedade civil, aproveitando a experiência técnica de uma comunidade global, se assumem como os stakeholders da governação da Internet.
As questões e desafios da Governação da Internet, tais como a conectividade e acesso, privacidade, dados, competências digitais, inclusão digital, proteção de nomes, marcas e direitos de propriedade intelectual, bem como as jurisdições/soberanias nacionais desse recurso global, levam a que se sinta a falta de um órgão internacional onde se possam discutir essas matérias. Não obstante, existe a clara perceção que organizações baseadas em leis nacionais não são apropriadas para governarem os recursos críticos da Internet.
Esta constatação leva a uma evolução das tensões à volta do status quo porque não se sabe como lidar com um recurso que se tornou tão poderoso para a sociedade e a economia que, a falhar, pode levar ao colapso mundial. E a hegemonia dos EUA na regulação do sistema de nomes de domínio da Internet, através da influência que tem junto da ICANN[2], provoca desconforto aos governos oriundos de países vários, nomeadamente da América Latina, África e Ásia, países árabes e Rússia, por considerarem estar-se a colocar em causa a soberania dos Estados numa infraestrutura crítica global.
Desafios da Governação Multistakeholder
São atualmente reconhecidos os méritos e as limitações da governação multistakeholder. Os méritos residem na riqueza das contribuições para as “policy decision” e “decision making”, enquanto as limitações estão na legitimidade, conflito de interesses, lóbi e manipulação dos diferentes stakeholders envolvidos.
Mas o que é realmente importante para o resultado da governação é a forma como as decisões são tomadas, e como têm em conta outros interesses e diversos saberes, e quão abertos estão para um diálogo e prestação de contas contínuos, uma vez que o digital veio transformar as sociedades e economias a uma enorme velocidade, “da manhã para a tarde”.
O modelo multistakeholder é como uma toolbox, e não uma solução única. Estão inerentes uma série de ferramentas e de práticas que indivíduos e organizações de diferentes quadrantes utilizam para a partilha de ideias e de consensos à volta de políticas (de natureza técnica, como normas e interoperabilidade) e de políticas públicas, que estão constantemente em jogo, inerentes à própria natureza da Internet.
A governação multistakeholder não significa que todos decidem sobre tudo, por isso, à pergunta inicial “E se todos nós governássemos a Internet?” não faz sentido. O que faz sentido é uma modalidade estruturada que compromete todos os interessados agrupados por interesses, direta ou indiretamente e formatar partes do cada vez mais complexo ecossistema que governa a Internet. Foi a prática que trouxe a Internet como um facilitador poderoso para a humanidade como um todo.
É neste contexto que no final da 2.ª fase da WSIS, em 2015, foi criado o Forum da Governação da Internet (Internet Governance Forum – IGF). O IGF nasce como resposta ao impasse criado por os EUA não abdicarem da sua hegemonia na Internet.
O IGF cria as condições para, anualmente, se estruturar uma discussão multistakeholder que permita discernir e responder à mudança rápida dos mercados e da tecnologia, acabando por influenciar as estratégias nacionais.
Posicionamento de Portugal
Desde 2010 que Portugal organiza a sua Iniciativa Nacional do Fórum da Governação da Internet (PT-IGF) como uma plataforma nacional de diálogo multistakeholder para informar e debater, de uma perspetiva nacional, alguns dos temas e aspetos principais das discussões em curso, a nível mundial, sobre a Governação da Internet.
O lançamento da iniciativa decorre da criação espontânea de Iniciativas Nacionais e Regionais do IGF para discutir questões emergentes relacionadas com a Governação da Internet junto das respetivas comunidades. Todas as Iniciativas Nacionais e Regionais aderem aos princípios do IGF espelhados nos artigos 72.º e 73. da Agenda de Tunes que resultou da 2.ª fase da WSIS.
De cada edição resulta um documento intitulado “Mensagens de X” (cidade onde o evento tem lugar) onde são captados os principais pontos em discussão, sem se fazer qualquer juízo de valor. Não se trata de um documento consensual nem negociado, apenas elenca os vários pontos de vista apresentados em cada sessão do evento. Da edição de 2017 resultaram as Mensagens de Lisboa que contribuíram para a discussão, a nível mundial, no IGF 2017, realizado na Suíça, entre 18-21 de dezembro de 2017, sob o tema “Shape Your Digital Future!”. As “Mensagens de Aveiro 2018” que resultam do PT-IGF realizado em 17 de outubro, serão apresentadas no IGF 2018, a realizar em Paris, entre 12-14 de outubro, sob o tema “The Internet of Trust”. Este é um tema muito apropriado quando estamos hoje a caminhar cada vez mais para uma “sociedade da manipulação”, devido ao crescimento imensurável da desinformação a nível mundial. Urge, assim, retomar a “sociedade do conhecimento”.
O futuro da governação da Internet
Cada vez mais os diferentes stakeholders dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, se sentem com legitimidade para exercerem o seu direito de intervenção e participação, possibilitando um diálogo e uma influência no policy-making inigualável até aos dias de hoje.
Mas uma questão muito interessante é perceber o futuro do papel dos governos neste modelo. Muitos têm na sua agenda política a capacitação dos seus cidadãos de forma a contribuírem para uma sociedade civil mais robusta e exigente, fortalecer as comunidades técnica e académica, favorecer o melhor enquadramento para um setor privado forte, mas, por outro, assistimos a outros a restringir direitos humanos fundamentais como privacidade e liberdade de expressão em nome, por exemplo, da cibersegurança.
Este é um caminho difícil e de avanços e recuos contínuos. A Governação da Internet continua, pois, em construção. O caso da Governação da Internet é sem dúvida muito importante para se perceber como irá evoluir a governação em outros recursos globais, como é o caso do Ambiente, pois desde a WSIS que toda uma nova geração de policy-makers evoluiu, com capacidade e vontade de perceber os problemas sob diferentes perspetivas.
E, tal como ouvi alguém mencionar numa discussão internacional, “we need to run fast, just to stand still”.