Estou sentado num promontório a pique sobre o mar Mediterrâneo, é o promontório do cemitério de Manarola, uma das cinco aldeias das Cinque Terre. O cemitério situa-se mais acima no cume, aqui onde estou existe um pequeno miradouro com um par de banquinhos e a sombra de um pinheiro-manso. Ambos, eu e o cemitério, temos uma das vistas mais celebradas deste mar: a derrocada imóvel de casas suavemente coloridas suspensas na falésia do outro lado do fiorde.
De cada vez que regresso a Manarola, coloco a mesma questão, sem que alguém me possa dar a resposta: porque é que deram a melhor vista aos mortos? Provavelmente só os mortos, mais concretamente aqueles que fundaram o cemitério há mil anos, me poderiam responder. Talvez o primeiro defunto da história da aldeia tenha sido enterrado aqui para aliviar a dor dos seus parentes com o panorama imenso que encontravam. Talvez o primeiro defunto fosse uma criança, e a dor dos seus pais fosse tão imensa como o panorama.
A partir do banquinho onde estou sentado, reparo numa lápide incrustada na rocha. Diz, em inglês: “Em memória da Sarah.” Por baixo, leio um nome masculino, Christopher. Vinham do Ohio. Quem eram? Pelo que compreendo do poema na lápide, este promontório vira nascer o amor do casal, ou contribuíra para os anos melhores da sua vida. Ocorre-me que talvez os banquinhos sejam uma doação de Christopher, de facto não recordava o miradouro assim tão arranjadinho. Será que Christopher veio do Ohio com as cinzas de Sarah e as lançou neste vento e as espalhou neste mar?
A atracção que os promontórios exercem sobre os humanos é fácil de explicar. Representam o limite da viagem, a impossibilidade de continuar em frente. São a metáfora do fim. No livro de Steinbeck A Um Deus Desconhecido, o protagonista decide explorar o território que se encontra para lá do seu vale. Atravessa uma floresta que por sua vez dá lugar a um promontório, onde vive um místico tresloucado que todos os dias sacrifica um pequeno animal ao sol poente. O sol poente na tradição cristã simboliza o momento da morte. É uma das imagens mais fortes de um romance pagão que celebra a sujeição voluntária ao culto da Natureza. Li o romance quando tinha 20 anos. Aos 40, aluguei um carro e percorri o mesmo vale, depois atravessei a mesma floresta, até alcançar esse promontório. O vale chama-se San Antonio, a floresta está nas montanhas de Santa Lucia, o promontório situa-se nas falésias de Big Sur. Um dos pedaços mais intactos e intemporais da Califórnia.
Como se transportam cinzas num voo internacional? Será preciso declarar o conteúdo à chegada? Passam como bagagem de cabine, ou têm de ir no porão? É preciso especificar o nome do defunto que deu origem às cinzas, ou basta designá-las como “restos mortais”? E a pergunta derradeira: se fosse eu o “resto mortal”, para qual promontório gostaria, nessa condição pulverizada, de ser transportado e espargido?
Faço a lista de todos os promontórios que amei, na vida que levei até hoje. Mas não perco tempo a dar-lhes uma hierarquia sentimental, porque a resposta não se encontra nos promontórios que mais amei mas sim no que mais me amou: aquele onde vivo, que encerra a baía da Figueira da Foz e que leva o nome do seu rio. O cabo Mondego.
Terá de ser um dia de nortada. Da ponta do cabo, as minhas cinzas serão lançadas contra o Atlântico. Levitando, durante alguns segundos de intensidade liberatória, no vento frio e húmido que chega do mar, rapidamente irão ser varridas por uma rajada na direcção da terra que me viu nascer. E assim regressarão ao lugar a que pertencem. Entre rodopios de vento e humidade salgada, poderei então pensar: já chega de tanta viagem, era tempo de voltar a casa.