Bolsonaro, o velho membro da classe política brasileira soube ler os tempos e cavalgar a onda de decepção e ódio contra a descarada corrupção dos governos do PT, mas também o medo e o desespero latentes devido à extrema violência nas ruas, de tal modo que se conseguiu eleger como populista de direita, face à falência do centro político e a um extremar de posições nunca visto. Mas todos os estudos indicavam que se Lula não estivesse preso seria ele o novo presidente. Vá-se lá entender isto.
Nunca se viu o discurso do ódio ser tão exacerbado, em particular nas redes sociais, como nestas eleições, de tal forma que promoveu desinformação, preconceito e sobretudo ofensas, palavrões e intimidações, separando amigos do peito, dividindo famílias, comunidades e até igrejas. Mas é tempo de começar a entender que os 57 milhões de votantes em Bolsonaro não são fascistas – a não ser, talvez, uma pequena parte deles, e nem todos os 47 milhões eleitores de Haddad são comunistas, com algumas excepções.
No discurso de vitória Bolsonaro procurou descansar a outra metade do eleitorado que votou contra ele, prometendo um governo decente, inclusivo e jurando respeito pela democracia, a liberdade e a Constituição. Mas esta é a mesma pessoa que debitou as maiores barbaridades contra os adversários políticos, os negros, as mulheres, os gays e outras minorias. O mínimo que se pode dizer é que, para não eleger um presumível corrupto (ou melhor, um político dum partido enterrado em corrupção enquanto foi governo) o Brasil elegeu um irresponsável, que diz tudo e o seu contrário, conforme lhe vem à boca. Em que Bolsonaro acreditar? No que afirmou em 1999 que seria preciso matar 30 mil pessoas no Brasil e que o país nunca mudaria pelo voto mas sim por uma guerra civil, ou no que faz juras de respeitar a democracia?
Para os religiosos seus indefectíveis deixo a palavra do apóstolo Tiago (3:10-12): “De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se faça assim. Porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa? Meus irmãos, pode também a figueira produzir azeitonas, ou a videira figos? Assim tampouco pode uma fonte dar água salgada e doce.”
Parece que triunfou também a “teologia da prosperidade”, de influência ianque, que nega o sofrimento comum neste mundo, que responsabiliza o pobre, o doente e o inválido pela sua condição, mas que contraria o que dizem as Escrituras, isto é, que Deus “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mateus 5:45). Nem explica tão pouco como o apóstolo Paulo, um gigante da fé sofria e era pobre (II Coríntios 6:10). Tal teologia produz uma atitude triunfalista que reserva aos cristãos o direito de dominar o mundo através da política, da economia e dos negócios, para que eles dominem outras religiões e imponham ao mundo uma teocracia, contra o estado laico que o próprio protestantismo reformado da Europa ajudou a construir. Mais uma vez em contradição com o Evangelho, já que o próprio Jesus disse a Pilatos que o seu reino não era “deste mundo” (João 18:36).
É sabido que o sector evangélico apoiou Bolsonaro especialmente por se assustar com o chamado “kit gay” nas escolas, e a lei que o PT pretendia fazer aprovar no sentido da penalização de qualquer ministro religioso que se recusasse a celebrar o casamento entre homossexuais, violentando assim a sua consciência. Daí a oração de Magno Malta, pastor e senador, que considerou o presidente eleito como “ungido por Deus” e “cristão verdadeiro”. Os equívocos acontecem. Se podemos aprender alguma coisa com a História, então lembremo-nos que menos de um por cento dos 17 mil pastores protestantes alemães se negaram a apoiar o regime nazi nos anos trinta. Mas o futuro dirá se o actual compromisso dos evangélicos com o populismo pode ou não vir a revelar-se um tiro no pé.
A corrupção é um problema do sistema político-partidário. Como se consegue governar com 36 partidos parlamentares sem negociatas? Como diz Miguel Sousa Tavares, a corrupção “não nasceu com o PT e vai continuar com Bolsonaro”. Mas ao menos espera-se que a partir de agora ouçamos notícias sobre o fim da violência no Brasil, pois foi para isso que elegeram Bolsonaro milhões dos que antes davam o seu voto ao PT. Cabe agora ao novo presidente a responsabilidade ética e política de trazer unidade a uma nação profundamente dividida como nunca se tinha visto.
Para já os primeiros sinais não são encorajadores, mas convenhamos que será um exercício difícil para quem disse um dia que “o grande erro da ditadura foi não matar vagabundos e canalhas como Fernando Henrique [Cardoso]”, que por acaso é o único presidente eleito que não está preso nem foi impugnado. Ou que “O erro da ditadura foi torturar e não matar!” Ou, ainda, que “Pinochet devia ter matado mais gente”…
Deus ainda é brasileiro?