É talvez o mais surreal sinal de trânsito que alguma vez verás na tua vida. Um encapuçado de perfil com o dedo esticado à frente dos lábios. O encapuçado não representa um algoz ou um clandestino. A vestimenta que ele usa seria quase universalmente reconhecida como a de um religioso, de um despojado por livre-arbítrio, a roupa de um homem de Deus. O hábito do monge. O gesto que ele faz também seria quase universalmente reconhecido: o gesto a indicar silêncio.
A estrada estreita, escavada na montanha, a pique sobre o abismo, em curva e contracurva; e a vegetação cerrada e escura que não permite ver para lá da curva e da contracurva, transmitem a sugestão permanente de perigo na condução e o mais sensato seria avisar com umas boas buzinadelas a quem vier em sentido contrário que estou aqui. Mas o sinal de trânsito não o permite. “Zona de Silêncio.”
A estrada conduz a um parque de estacionamento ao lado de um edifício sóbrio e solene. Saindo do automóvel, percebes melhor a configuração da zona de silêncio. É um vale profundo e apertado, coberto de um manto denso de bosque impenetrável e para cima das colinas verdes, quando a inclinação já não permite mais árvores, erguem-se falésias brancas, verticais, majestosas, mas também intransponíveis. Ninguém vem parar por acaso a este vale, só uma determinação de ascetismo e isolamento conduziriam um ser humano aqui.
Ainda faz calor mas sente-se já na humidade da terra e na inclinação do sol que em breve chegará o tempo do frio. E frio, aqui, significa frio. Tal como o silêncio, aqui, já percebeste, significa silêncio. Entro no edifício. Neste, posso entrar: é o museu, aberto a turistas, do mosteiro da Grande Chartreuse. Mas no corpo central do complexo monástico, dois quilómetros mais para lá, por uma estrada semeada de sinais de trânsito “Zona de Silêncio”, não é permitida a entrada a nenhum de nós que chegamos da vida real, do mundo exterior, dos tempos modernos. É um dos poucos mosteiros de clausura que ainda resistem no planeta. Um testemunho anacrónico de uma opção existencial que até há bem poucas décadas era bastante comum no cristianismo. Imagina-te a tomares a decisão de te retirares para um mosteiro no meio dos Alpes, coberto por neves permanentes durante meses seguidos, dedicado a uma vida de oração, contemplação, trabalho manual e silêncio. Para sempre. Imagina-te a chegares a casa e anunciares aos teus pais, ou à tua mulher, ou aos teus amigos de copos e futebol: “Vou viver para um mosteiro de clausura. Adeus.” Não é um “até qualquer dia, até breve”. A clausura é para sempre.
O mosteiro foi fundado em 1084, dando início à Ordem dos Cartuxos que, nos séculos, se espalharia pelo mundo inteiro. Este mosteiro é, ainda hoje, a casa-mãe da ordem. No seu apogeu, só aqui na Grande Chartreuse terão vivido uns 200 monges. Hoje, a ordem toda, no mundo inteiro, conta com pouco mais de 300. No mosteiro, resistem 30 homens.
Subo pelo trilho que permite ver o complexo desde o alto, inserido no meio desta paisagem extraordinária, serena, agreste. Lá em baixo, imenso, arranjadinho, delicado como um kit para crianças, estende-se a Grande Chartreuse. Mas só vejo os telhados, o resto está encoberto, reparado de olhares indiscretos. Imagino claustros limpinhos, jardins geométricos, sebes aparadas, lenha cortada toda igual, celas luminosas mas isoladas. Lá em baixo, oração, trabalho manual, contemplação.
Regresso ao carro rodeado de um silêncio imóvel e infinito. Um corvo grasna no céu. O vento sibila entre as árvores, a água de um riacho gargareja. Um sino toca, algures. Sons que, aqui, fazem parte do silêncio.