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Eu raramente aceito fazer músicas por encomenda, com um propósito específico, a pretexto de seja o que for. Sei lá se vou conseguir, isso não é coisa que se prometa. Aceitei escrever cinco canções para o remake do filme A Canção de Lisboa e na data de entregá-las só tinha conseguido fazer três. Como é que eu posso prometer uma coisa que não existe? As músicas aparecem quando elas querem. Por isso nunca me comprometo. Não sou fiável, mais vale não ficarem a contar. Sempre que algum intérprete me pede alguma canção para um disco, eu digo sempre que vou tentar, que se à data do fecho do reportório eu não tiver aparecido com nada, então que sigam com a vida. Acontece muitas vezes. Noutras, lá aparecem as músicas. É sempre incerto e nunca, nunca depende da minha vontade. Quem me dera. Mas não depende, eu não sou fiável. Aceitei quando foi do filme, mas penei tantas angústias que agora já não me comprometo. Nessa altura, mandei uma das canções tão para lá do limite que já era madrugada, a madrugada da filmagem da cena na qual a canção era central. Era o César Mourão que a iria cantar, ao vivo, take direto, e teve de se agachar cá fora de viola ao colo e telemóvel na orelha a sacar os acordes debaixo de um toldo às três da manhã, em noite de chuva torrencial. Foi mau, uma equipa toda em xeque, o pobre do César à rasca debaixo dum toldo a chover-lhe de lado e as pessoas à espera. Não me posso atravessar com prazos. Noutras vezes lá vou eu no meu carro e tenho de encostar para cantarolar para dentro do telemóvel uma melodia completa, às vezes uma canção inteira, um novelo que se puxa por uma ponta e lá vem ela toda direitinha. Uma vez ia tocar ao programa Ídolos e eles a chamarem-me para entrar em direto e eu escondido na casa de banho a puxar uma música inteirinha pela pontinha do novelo. Foi por estas e por outras que, quando o Daniel Oliveira me pediu uma canção para o programa Alta Definição, que na data tal faria não sei quantos anos, eu disse logo que melhor era não contar. Mais ou menos por essa altura, fui eu convidado do programa. Já tinha visto alguns, tinha visto o do Zambujo, o do César, o da Luísa, o do João Gil, e sempre me pareceu um programa que escapa ao padrão de superficialidade que impera no mundo televisivo. Eu não gosto de ir à televisão, porque paira sempre no ar um espírito “câmara jovem, câmara em movimento”, uma guilhotina de rapidez, jovialidade e piada pronta apontada aos pescoços do entrevistador e do entrevistado, que a mim me aflige e me incapacita. Fico nervoso, não consigo afinar por essa bitola de graciosidade, por esse golpe de espada, um “voilà!” que quase sempre se exige da resposta. Isso redunda quase sempre em que, para mim, a linguagem televisiva seja, essencialmente, superficial. “Fizz limão? Vejo que o Miguel gosta do verão!!” Não, não é isso, não é nada disso. Gosto do verão, claro, toda a gente gosta, mas não é isso. É por isso que lá fui eu para o Alta Definição meio entalado, como vou sempre. Mas ali passa-se algo de bastante milagroso, fora do comum em televisão. Aquilo é feito com calma, com bastante dedicação por parte de quem prepara. O Daniel Oliveira dedica-se ao trabalho dele tanto como eu me dedico ao meu. Existe um diálogo profundo. Exige também, da parte de quem vê, dedicação. Senão, fica-se pela superficialidade habitual da televisão. Mas foi de longe a melhor entrevista da minha vida. Fui ver mais programas, observei profundidade em figuras que tomava por superficiais, e isso acontece sempre, a cada programa. E nisto lá me saiu a musiquita. Com mais de um ano de atraso, mas saiu. Fala sobre a impermanência da vida, sobre a melancolia que nos toca a todos pelo facto de essa impermanência ser a realidade das coisas todas. É esse o meu olhar sobre tudo. Quem diria que haveria de ser um programa de televisão a dar-me essa canção, que andava desde sempre recolhida em novelo dentro de mim, à espera que uma ponta de fio se soltasse.
(Crónica publicada na VISÃO 1335, de 4 de outubro de 2018)