Estou sentado de madrugada num bar do aeroporto de Amesterdão e graças a Deus tenho um café espresso fumegante à minha frente. Passei a noite a bordo de um voo intercontinental e, como sempre me acontece, quase não consegui dormir. Entre a sonolência que faz divagar os pensamentos sem nexo, e a agitação da cafeína, o meu estado é, digamos, “alterado”. Em qualquer outra situação da minha vida, por exemplo, uma reunião de trabalho, ou ir fazer surf, ou levar o meu filho à escolinha, eu já teria entrado em pânico por me encontrar “alterado”. Mas aqui no aeroporto internacional, no hub, entre dois voos com várias horas pela frente de espera, e sem absolutamente mais nada para fazer, este é na realidade o melhor movimento mental que eu poderia desejar, uma espécie de segundo andamento de um concerto do período romântico: adagio moderato ou andante sostenuto ou ainda largo con brio.
Um senhor senta-se numa mesa perto da minha, pede uma cerveja. É cedo para uma cerveja: ou chega agora de um fuso horário onde são horas de uma cerveja; ou chega de um país islâmico onde não há cerveja. Ou ambas as possibilidades. Olho melhor para ele. Parece-me conhecê-lo. Tem cara de iraniano mas pede a cerveja num inglês perfeito com sotaque americano. Olho melhor e parece-me mesmo conhecê-lo. Será o iraniano que bebeu comigo umas cervejas ao cair da tarde num bar de Maui em Janeiro de 2009? Como era mesmo o nome dele? Apresento-me e explico-lhe tudo o que estou a pensar sobre já nos termos conhecido. Chama-se Hamin. O nome não me recorda nada. Vive em São Francisco. Deixou o Irão há 45 anos: “Custa habituarmo-nos a viver nos EUA, mas depois já não conseguimos voltar para a pátria. Ainda por cima, com aquilo em que a Pérsia se tornou.” Nunca usa a palavra “Irão” para designar a sua terra, diz “a Pérsia”. Efectivamente costuma ir de férias para Maui no inverno e podia de facto ter bebido umas cervejas comigo num bar ao cair da tarde a olhar para o Pacífico. Mas não se recorda de alguma vez me ter conhecido.
O empregado de mesa pergunta-me se quero mais alguma coisa. Quero, outro café, não sabem tirar um bom café, era aguado o primeiro, enfim, estamos na Holanda, não posso ter muitas pretensões. Na realidade não estamos na Holanda, estamos num hub. Apesar de ao longo dos anos ter passado tempo em quase todos eles, nunca consigo recordar o aspecto dos aeroportos, são todos iguais. Se num concurso me pusessem à frente imagens dos espaços comuns dos principais hubs do mundo para eu os identificar, faria triste figura. Não surpreende que o sociólogo Marc Augé tenha escolhido o aeroporto como representação emblemática do seu conceito de “não–lugar”: estruturas que, pela sua estandardização, anulam a identidade dos seus utentes. Os centros comerciais, as áreas de serviço, os elevadores, os aeroportos. Somos todos iguais, todos consumidores, todos transeuntes, todos de passagem.
De uma forma mais empolgante e fiel à sua missão original, o hub é também o símbolo moderno da distância que separa dois países. É a actualização metafísica do pedaço de território entre dois postos de migração conhecido como “terra de ninguém”, e que todos os viajantes independentes sempre percorrem com o coração nas mãos esperando que tudo corra bem na entrada no país mais à frente. Estou portanto em terra de ninguém. Sinto-me ninguém? Sim, esta é a minha terra hoje. Eu sou um utente, a minha identidade é um passaporte, a transitoriedade da minha existência está condensada neste momento.
Olho para o placard, anuncia por fim a minha porta de embarque e que demoro treze minutos a pé desde aqui até lá. Et voilà. Começo