Tem razão o Presidente da República: “Foi um debate muito participado por todos os quadrantes político-partidários, religiosos, sociais. Agora seguem o seu curso as iniciativas parlamentares, esperarei aqui em Belém.” Marcelo Rebelo de Sousa referia-se ao debate público aberto pelo Movimento Cívico pela Despenalização da Morte Assistida. E tem razão: foi um debate que, nos últimos dois anos, foi intenso e muito participado. Agora é o tempo do Parlamento.
Na ânsia de barrarem caminho a uma decisão democrática sobre este assunto, os adeptos da manutenção da pena de prisão até três anos para quem entenda corresponder ao pedido de antecipação da morte de um doente sem cura e em destruição quer do corpo quer da dignidade aos seus olhos bradam com a suposta falta de legitimidade do Parlamento para legislar porque os partidos não incluíram este tema nos seus programas eleitorais. Este apego repentino à importância dos programas eleitorais é democraticamente comovente, sem dúvida. Imbuído desta comoção democrática, não lhes perguntarei o que dizia o programa eleitoral do partido x sobre meios da proteção civil ou o programa eleitoral do partido y sobre diversificação dos meios de financiamento da Segurança Social. Poupamo-nos assim à embaraçosa situação de ficar claro que quem agora clama pela importância crucial dos programas eleitorais nunca se deu ao trabalho de ler nenhum.
Os mesmos defensores do escrúpulo democrático neste assunto – não me recordo de os ver defender a democracia máxima quando o Parlamento aprovou tratados europeus que diminuem… a democracia – sugerem que 230 deputados vão arrogar-se o direito de decidir em conclave fechado aquilo que só o povo tem o direito de decidir. A insinuação da falta de genuinidade democrática do Parlamento tem perna curta e história longa. Percebe-se a intenção de aplicar a lógica televisiva do Prós e Contras que empurraria para uma decisão a preto e branco. Com informação a menos e emoção a mais. Sucede que a despenalização da eutanásia não é uma questão de um simples sim ou não. É uma decisão que tem de convocar experiência e conhecimento, interlocução com a pluralidade de posições de constitucionalistas e penalistas, médicos e enfermeiros, filósofos e estudiosos de ética e também – e sobretudo – com quem acompanha histórias de sofrimento desesperante de familiares e amigos. Tudo isso para fazer acompanhar a despenalização de uma definição rigorosa de requisitos para que ela possa operar e de meios de fiscalização da sua verificação. Inquestionavelmente, o processo de trabalho do Parlamento é o que dá mais garantias de acautelar o rigor que uma lei sobre este assunto delicado tem de ter.
Nesta reta final do debate, só o desespero pode explicar o uso de argumentos vocacionados para incutir o terror. Que eles venham de pessoas com responsabilidade institucional na área médica é motivo para especial preocupação e repúdio adicional. Invocar que uma fibromialgia ou uma artrite reumatoide serão motivo suficiente para a prática de eutanásia podia ser só pouco sério. Mas é mais: é uma expressão de desprezo pelo conhecimento dos médicos que virão a intervir no processo de aferição dos requisitos da morte medicamente assistida. O que consta dos projetos que vão a debate no dia 29 é claro: uma demência, uma doença crónica ou uma doença psiquiátrica não são condições suficientes para a antecipação da morte. Muito menos ser velho e socialmente vulnerável – porque não são doenças e é só de doenças que os projetos apresentados ao Parlamento tratam.
O que o Parlamento decidirá no próximo dia 29 é se amplia ou não o espaço da tolerância numa sociedade plural como felizmente é a nossa. É se acolhe ou não mais um caminho na luta contra o sofrimento e pela dignidade. Confio que sim.
(Artigo publicado na VISÃO 1315, de 17 de maio de 2018)