Uma das experiências que devem estar na lista de qualquer ser humano sensível é a visão de Machu- Picchu a partir dos socalcos mais altos das ruínas. Nas últimas décadas, a popularidade da cidade perdida dos Incas aumentou exponencialmente, criando um excesso de visitantes que naturalmente retira parte do encanto de uma visita. No entanto, a primeira vez que estive em Machu-Picchu estive praticamente sozinho. Foi no início dos anos 90, quando o Peru se encontrava mergulhado no segundo momento mais sangrento da sua História (o primeiro foi a chegada dos conquistadores espanhóis).
O Sendero Luminoso iniciara a sua actividade terrorista em 1980 e durante toda a década tinha-se tornado o movimento mais cruel e temido do mundo. O Peru encontrava-se portanto no auge de uma guerra de terror, que reduzira as presenças turísticas a números insignificantes, quando eu visitei Machu-Picchu pela primeira vez. A desvalorização do sole permitiu também que eu pudesse pagar uma noite no célebre hotel que fica na entrada do sítio e a verdade é que depois de anoitecer simplesmente saí do hotel e fui passear pelas ruínas com a lua cheia no céu. Não sei se era legal e se hoje em dia é tecnicamente possível entrar em Machu-Picchu de noite, mas nesses idos de 1993 foi assim que as coisas se passaram. Um dos momentos mais emocionantes da minha vida.
Anos depois percorri o célebre percurso de trekking do Caminho Inca, que ao longo de quatro dias conduz a Machu-Picchu pela antiga estrada que ligava a capital do império Inca, Cusco, à cidadela perdida. Quando eu terminasse o trekking estaria pela terceira vez em Machu-Picchu, pois entretanto, após essa primeira vez em 1993, tinha regressado lá. Não me importo nada de regressar a Machu- -Picchu, portanto não hesitei em inscrever-me no Caminho Inca. Digo “inscrever-me” porque de facto o percurso tem um número limitado de pessoas por dia, na altura 250 (agora creio que 500). Por outro lado, o percurso tem de ser feito em grupo, sob a direcção de um guia e através de uma das várias agências autorizadas a explorar esta experiência. Ou seja, não é possível fazer o trekking individualmente, por conta própria; apenas num package onde a alimentação e as dormidas (em tenda) estão incluídas. Medida sensata, a de limitar o número de caminhantes. E também é sensata a obrigatoriedade de recorrer a uma agência: não apenas tutela a conservação do caminho, como também dá emprego a dezenas de peruanos: staff de escritório, cozinheiros, carregadores e guias.
O Caminho Inca é duro. Caminhamos do fundo do vale até aos 4200 metros de altitude do passo de Warmiwañusca, dormimos em chão de pedras com temperaturas negativas, não há emergência médica nem aldeias nem electricidade nem água quente. O corpo não está habituado a caminhar sem parar todo o dia, ainda por cima em declives ingratos, sempre a subir e a descer. O cansaço do esforço físico, da falta de oxigénio em alta montanha e das noites mal dormidas retira uma parte do nosso entusiasmo. Mas todos continuamos caminhando, pois é Machu-Picchu, um dos lugares mais extraordinários do planeta, que nos espera no fim do caminho.
No fim do caminho, na madrugada do quarto dia, um manto espesso de neblina ocultou a visão das ruínas. Foi um desapontamento duro, depois de tanto esforço, para os 250 caminhantes que chegavam por fim a Machu-Picchu. Ou melhor, para 249 desses caminhantes. No meu caso, o desapontamento era marginal. Eu já conhecia Machu- -Picchu. O que eu queria conhecer era o caminho para lá chegar.
Fiquei a pensar numa frase batida: “o que importa é a viagem e não o destino”. Nem sempre, mas desta vez foi mesmo assim.
(Crónica publicada na VISÃO 1304, de 1 de março de 2018)