O Orçamento do Estado, aprovado na generalidade na passada sexta feira, é – não vale a pena estar com paninhos quentes – um mau orçamento. Antes de mais porque não é, obviamente, um orçamento de futuro. Cumpre o objetivo do défice, é verdade, mas fá-lo casando um aumento de receitas que são conjunturais e cuja sustentabilidade futura em boa parte não depende da ação do executivo, com despesas que são rígidas e estruturais. Mais avisado seria, obviamente, usar esta “folga” conjuntural (já cá volto) para atacar aquele que é o maior dos nossos problemas estruturais: a dívida colossal que muito condicionará as opções das gerações futuras.
Mas este orçamento é também um orçamento débil porque é um orçamento muito mais tático do que estratégico. Num contexto em que se deixou criar a ideia perigosa de que existe uma “folga” (como se um país com uma dívida como a nossa pudesse falar em folgas), o orçamento tenta endereçar um conjunto de questões mais ou menos avulsas, mais ou menos justas (porque as há) sem que se consiga vislumbrar uma coerência de conjunto, muito menos algo que se assemelhe, ainda que remotamente, a uma reflexão de fundo sobre os problemas que endereça. Vejamos alguns exemplos mais óbvios. Faz sentido, em pleno século XXI, com todas as mudanças que se adivinham no futuro do trabalho, continuar a imaginar progressões de carreira que (também) se fazem com base na simples passagem do tempo? Não devíamos discutir profundamente quais as funções imprescindíveis para o Estado no atual contexto social e tecnológico e apostar numa qualificação e remuneração competitiva dos funcionários que as exercem em vez de distribuir aumentos indiscriminados? Governar não é fazer escolhas? Não parece evidente que não discutir a sustentabilidade das pensões é empurrar problemas para as gerações que ainda não nasceram (e que portanto não têm voz)?
Ironia do destino, e permitam-me agora uma deriva que é só aparente, a aprovação deste orçamento aparece na mesma semana em que o País acordou mais uma vez chocado com a evidente falência do estado em garantir a segurança dos seus cidadãos. Facto particularmente grave na medida em que até um liberal dos quatro costados concordará que, a par da defesa, da diplomacia e da justiça, a segurança faz parte do núcleo central das funções de qualquer estado. É bom lembrar aliás que uma das fundamentações clássicas para a criação das sociedades políticas é, precisamente, a outorga ao estado do chamado “monopólio da violência”.
A ironia é pois esta: na semana que aprovamos um crescimento largamente irrefletido e largamente impensado do Estado, damo-nos conta (pelos menos os mais distraídos de entre nós) de que privatizámos, sem acautelar sequer uma fiscalização sólida e eficaz, uma das suas funções mais cruciais. O Estado cresce em direções duvidosas para desaparecer de territórios onde é ainda mais duvidoso que possa ser substituído.
É evidente, importa dizê-lo, que esta contradição absurda não é, apenas, responsabilidade do atual executivo ou da atual maioria parlamentar. O debate não ganha nada aliás em ser politizado no mais míope sentido da palavra. Esta contradição é antes consequência de décadas de incapacidade de fazer uma reflexão política séria, com sentido estratégico, sobre as funções e a dimensão do estado que queremos e podemos. ter. Para ilustrá-lo não é preciso recuar mais longe do que a gaveta onde Paulo Portas esqueceu (mais) uma muito prometida reforma do Estado. Enquanto não a fizermos, com a coragem dos que sabem semear para colher a prazo, continuaremos a espantar-nos com a dimensão de um estado cujo tamanho nos sufoca sem que seja capaz de acudir-nos quando dele mais precisamos.
(Artigo publicado na VISÃO 1288, de 9 de novembro, de 2017)