A primeira vez que ouvi falar no fenómeno da Enrosadìa foi numa boleia que apanhei nos Dolomites, o sector dos Alpes que separa a Itália da Áustria. O tipo que me deu boleia garantiu ser um dos espectáculos naturais mais extraordinários do mundo. Afirmou que só existia ali, e eu acreditei nele. Mas não era verdade.
A Enrosadìa acontece quando a vertente vertical de uma montanha composta por cristais de cálcio e magnésio, chamados cristais dolomíticos, é iluminada pelos primeiros raios do Sol. Com essa inclinação do Sol, baixo no horizonte, o reflexo na montanha atinge cores entre o violeta e o rosa e o encarnado, e dá-nos a impressão de uma imensa labareda que se levanta da face da Terra e sobe para o Céu.
Nessa primeira viagem pelos Alpes Dolomíticos não vi nada de parecido com a “labareda”. Aliás, nem nessa nem nas várias vezes que andei pela secção oriental da cadeia alpina, onde a densidade de cristais dolomíticos é mais preponderante. Entre outros factores, era necessário estar presente numa madrugada cristalina, sem uma única nuvem no horizonte que pudesse diminuir a intensidade e a eficácia da acção dos raios solares, e ter-me posicionado no lado certo do vale para observar a vertente da montanha virada a nascente. Este posicionamento variava consoante as coordenadas do nascer do Sol que por sua vez se iam alterando de dia para dia ao longo do ano, sendo totalmente diferentes, por exemplo, no dia 21 de Junho ou no dia 21 de Dezembro.
Mas entretanto aprendi uma coisa importante. A Enrosadìra, afinal, também ocorria em outras montanhas do mundo. Uma delas era no fim do mundo, nas montanhas da Patagónia. Por essa razão, e por outras, fui à Patagónia, ao fim do mundo.
Olhando para um mapa, a característica mais evidente da Patagónia é a forma como ela afunila todo um inteiro continente até o fazer desaparecer entre os dois oceanos mais agitados do globo – o Atlântico e o Pacífico. As consequências para a ocorrência do fenómeno da Enrosadìra são nefastas: apertar uma cordilheira entre dois oceanos significa potenciar os agentes que provocam perturbações atmosféricas. Com elas, temos nebulosidade assegurada. Recordo que para se verificar o fenómeno da Enrosadìra os raios de sol devem perfurar no máximo do seu fulgor, sem qualquer cortina que os embacie, os cristais dolomíticos presentes na parede vertical de uma montanha. Nada de nuvens no horizonte.
Andei três meses pela Patagónia e várias vezes tentei a minha sorte com o encontro quotidiano entre a madrugada e as montanhas dos Andes. Deixava o peso supérfluo da mochila numa qualquer pensão, punha-me a caminhar pelos trilhos de trekking dos parques naturais do fim do mundo e levantava-me a meio da noite para percorrer os últimos quilómetros até chegar aos miradouros onde era possível avistar a Enrosadìra. Entre outros, o lago no sopé do Monte Fitzroy, o prado que conduz à agulha do Cerro Torre, o planalto que antecede os três dentes do Maciço do Paine. E foi aqui, depois de muitas madrugadas frustradas, que finalmente apanhei um céu sem nuvens, um sol fulgurante, uma montanha a arder. A enorme, cósmica labareda durou uns poucos instantes, num arco de intensidade que começou com o erguer do astro solar e que ao fim de uns quinze minutos tinha praticamente desaparecido. Lembrei-me da consideração do italiano que me dera boleia tantos anos antes e pensei que ele tinha razão: era um dos fenómenos mais extraordinários da Natureza.
Por vezes, sou confrontado com a advertência de certas religiões que o fim do mundo está próximo e que seremos envolvidos num fogo avassalador. É verdade. O fim do mundo está a umas tantas horas de avião, mais umas quantas de autocarro, depois mais uns dias de trekking. E quando lá chegarmos, o fogo será breve mas intenso, e devorará tudo o que a nossa vista alcança, ou seja, as paredes verticais das montanhas à nossa frente.
(Crónica publicada na VISÃO 1273, de 27 de julho de 2017)