Os partidos socialistas europeus têm vivido um problema de identidade na última década e meia, agravado pela crise financeira de 2008. Inseridos num consenso liberal quanto à economia de mercado, os socialistas foram obrigados a transformar a sua prática e o seu discurso, nomeadamente quando chamados a governar.
No período antes da crise de 2008, coube-lhes consolidar esse consenso, como sucedeu com os sociais-democratas de Schroeder, que lançaram as reformas que moldaram o vencedor modelo alemão, ou como sucedeu com os trabalhistas de Blair, que não perderam um segundo a reverter as principais reformas de Thatcher; noutros casos, coube-lhes encontrar novos espaços de definição ideológica sem colocar em causa a globalização, como sucedeu com os socialistas de Zapatero, que lançaram propostas identitárias, não só em matéria de costumes (algo que Sócrates por cá replicou) mas também nos perigosos terrenos da memória histórica.
A crise de 2008 veio agravar esse problema, porque com ela chegaram os populismos de extrema-esquerda, que constituíram uma nova pressão. Se até esse momento os socialistas lidavam apenas com a sua consciência e passado, visível aliás nos debates internos ocorridos no seu seio, a verdade é que após o surgimento, ou a consolidação, dos partidos de extrema-esquerda, os socialistas passaram a ter de lidar, onde isso sucedeu, com uma feroz concorrência, sentindo-se encurralados e obrigados a reagir.
E a crise identitária deu lugar ao dilema, exposto ao Mundo com a erosão dos socialistas gregos: há suficiente e relevante espaço entre o consenso liberal e o populismo de extrema-esquerda e, se há, como é que este se preenche e como é que se executa quando no governo?
Talvez o caso dos partidos socialistas francês e espanhol seja o que melhor dá conta do atual dilema, um dilema agravado pelo seu modelo eleitoral, permeável, na sua aparente democraticidade, ao surgimento de minorias organizadas que condicionam os resultados.
Hollande chega a Presidente como o rosto de um novo modelo socialista capaz de rasgar o consenso liberal. Em meses se viu que o modelo não existia, não passava de retórica, e o seu governo acabou a aprovar reformas liberais. Não tendo resultado, os socialistas apresentaram Hamon, um socialista muito à esquerda, tão à esquerda que em muitos casos se confunde com a sua extrema. Foi o que se sabe, um desaire, com a extrema-esquerda, a original, a suplantar, e por muito, a cópia. Se cedem ao consenso liberal, não resulta; se cedem à extrema-esquerda, não resulta. O que fazer? E veremos ainda o que sucederá aos trabalhistas de Corbyn, que o elegeram no mesmo pressuposto que levou os socialistas franceses a apoiar Hamon.
Já os socialistas espanhóis, ameaçados por um Podemos que defende o modelo venezuelano, escolhem por estas alturas qual dos candidatos lhes pode assegurar o regresso ao poder: Pedro Sanchez, que defendeu consensos com os radicais de esquerda, que quis inspirar-se em António Costa e levou o partido aos piores resultados de sempre, ou Susana Diaz, mais moderada, mas que não consegue, como Hollande não conseguiu, explicar ao certo em que consiste a sua alternativa ao PP de Rajoy.
Mas por ser identitário, este dilema está a deixar marcas profundas, que não poderão ser saradas no curto prazo. É que o discurso de Hamon e Sanchez é altamente divisionista, acusando os socialistas moderados de falsos socialistas, de estarem feitos com a direita, beneficiando, nessa caminhada, de máquinas bem organizadas nas redes sociais, muito mais ideológicas. O que está a passar-se nos socialistas espanhóis não é bonito de se ver.
Não tenho dúvidas de que estas reflexões estiveram também na base da solução que António Costa encontrou, procurando obviar o crescimento do populismo à esquerda. Penso é que nem ele contava com a mansa atuação de PCP e Bloco. Mas ainda é cedo para sabermos das consequências deste arranjo e teremos tempo de falar delas.
O que importa concluir, deste momento, é que a direita não tem motivo para festejar estes problemas, até porque enfrenta problemas simétricos, embora distintos. O que se passa com os socialistas europeus, e que aqui descrevi, marca a dificuldade de encontrar um propósito mobilizador, de esperança, na moderação, o que constitui um convite ao radicalismo; e marca uma permeabilidade indesejável dos partidos a minorias demasiado organizadas e ruidosas que os radicalizam, que transformam a moderação em colaboracionismo, que deixam a política séria apenas para os radicais, que cria a ilusão de que o centro não existe ou não se recomenda.
Não pode vir coisa boa daqui.
(Crónica publicada na VISÃO 1261, de 4 de maio de 2017)