Bem-vindo ao território dos Cátaros”, diz o cartaz na auto-estrada. É um cartaz turístico, não existe nenhuma divisão administrativa ou geográfica que delimite um território assim. Mais ainda: não existe nenhum grupo de pessoas, nenhuma etnia ou memória cultural que identifique um território cátaro. Nem sequer existe um passado cátaro, a palavra foi utilizada no século XIX por um historiador para designar uma série de heresias medievais espalhadas pela Europa que na realidade não tinham ligação entre elas. Mas nos últimos anos os lugares ligados à heresia mais famosa de França tornaram-se extremamente populares como destino turístico, e é nesse sentido que o cartaz da auto- -estrada avisa os viajantes.
Faço a minha base em Albi, a cidade que deu o nome à seita cristã que no século XII se insinuou numa das regiões mais pacatas e civilizadas do mundo, o Languedoque. A seita dos Albigenses. Assim lhe chamou a Igreja de Roma, com desprezo e urgência de vingança quando se apercebeu que a sua autoridade era contestada e a sua opulência ridicularizada por comparação com o despojamento ascético do cerimonial albigense. Os seus fiéis auto-denominavam-se: “bons cristãos”. Estava implícito o insulto a Roma: eram os outros os maus cristãos.
A região do Langedoque permanecia no século XII orgulhosamente indiferente à autoridade central de Paris. Toulouse, a capital regional, vivia virada de costas para a França, aberta ao Mediterrâneo, culturalmente evoluída, comercialmente autónoma. Roma e Paris encontraram na heresia de Albi o pretexto geopolítico ideal para conquistar o Languedoque. Em 1209, Paris organizou o exército, Roma abençoou-o. A Cruzada contra os Albigenses durou vinte anos, devastou o sul da França, queimou terras e pessoas, uniu a nação francesa sob um único poder e serviu de exemplo por mais três séculos para as consequências de contestar o dogma romano.
Faço a minha base em Albi, uma das cidades medievais mais bonitas de França. Pouca sorte para as tentativas de revisionismo por parte da historiografia católica: como silenciar a cruzada contra a heresia albigense quando a beleza de Albi reside na história de Albi? Epicentro sentimental de uma região onde tudo se mede pelo equilíbrio e pela serenidade, desde os campos cultivados geometricamente ao traçado sinuoso das estradas rurais que os atravessam, desde as cidadezinhas paradas no tempo ao compromisso com a vida moderna dos que nelas habitam, em Albi permanece intacta uma ideia antiga que faz da França o país mais bonito do mundo. E por isso, Albi atrai turistas de todo o mundo. Bem-vindos ao território cátaro. Maldita cruzada, andaram mesmo a queimar pessoas. Leste o que estava escrito no guia sobre o cerco de Beziers? “Deixamos sair os católicos, messieur? Não, queimai-os todos, Deus reconhecerá os seus”. Leste o que estava escrito no guia sobre Montsegur? “A fogueira ardeu a noite toda até não restar um osso humano” Leste o que estava escrito sobre Marmande? Minerve? Lavaur?…
Faço base em Albi. Alugo um carro em finais de Abril, regresso cada fim de tarde ao mesmo hotel, nunca repito o restaurante, esqueço as vielas por onde passeei na noite anterior para voltar a descobri-las como se estivessem a ser inauguradas nesta noite só para mim. Amanhã volto a sair de carro para conduzir sem destino porque é Abril e os campos estão em flor. Como se chama a região? Ah, é verdade, bem-vindo ao território dos Cátaros.
(Crónica publicada na VISÃO 1260, de 27 de abril de 2017)