Este ano voltou a haver Festival da Canção em Portugal e, pela primeira vez, era permitido cantar em inglês. Reacendeu-se imediatamente o velhinho e vetusto debate. Muitas vezes perguntam-me, em entrevistas, o porquê de eu “optar” pelo português. E eu respondo sempre que “opção” seria cantar noutra língua, que sou português e que por isso o natural é cantar em português, blá blá blá. Respondo isso porque fico aflito, entrevistas são coisas aflitivas e eu respondo sempre com aquilo que mais rapidamente me vai desencurralar. Mas não acho nada disso, verdadeiramente. Quando se fala no Festival da Canção, ou na minha música, está-se a falar de música popular, música pop, música ligeira, seja o que for. Não se está a falar de “música portuguesa”. Na melhor das hipóteses, em alguns dos casos que inclui o meu, está-se a falar de “música em português”. Mas, na totalidade dos casos, a música em si, o formato, nada tem de português.
Cantar em português, escrever letras em português, neste género de música, é difícil, dá trabalho e não é nada natural. É uma tarefa que exige manha e teimosia, precisamente por não ser nada natural. E não é, nem poderá nunca ser, uma “obrigação cultural”. Dizer que um português tem uma obrigação cultural de cantar na língua nativa é como dizer que uma criança portuguesa tem uma obrigação cultural em brincar aos campinos, aos Descobrimentos ou aos legionários. Quando eu era pequeno, na minha rua brincava-se (naturalmente) aos índios e aos cowboys. Por razões muito anteriores à minha geração, o pessoal era mais Pat Garrett do que Almeida Garrett. Quando a brincadeira fartava, ligava-se a MTV e cantava-se (naturalmente) em inglês. A rapaziada da minha escola era muito mais Snoop Dog do que Diogo Cão. Por uma questão óbvia, cultural. (Somos um país culturalmente muito rico em tradição portuguesa, mas tradicionalmente muito pobre em cultura portuguesa – barretes verdes, varas de picar bois ou gigantones fazem parte da tradição e do folclore português, mas não fazem parte da nossa cultura. Pistolas de fulminantes, jeans Levi’s e guitarras elétricas, sim.) A razão de eu cantar em português tem muito pouco a ver com uma manifestação da cultura que me criou. Eu deixei de tentar cantar em inglês pela mesma razão que deixei de brincar aos cowboys. Ou de dançar em frente ao espelho com a escova de dentes a fazer de microfone. Ou de ver a MTV. Há idades para tudo, e eu já não tenho 9 anos nem 16.
Ao cantar em português não estou a proteger a nossa pátria nem a defender a bandeira da língua portuguesa. Se assim fosse, nada disto batia certo com as guitarras, os amplificadores e os pedais de efeitos nada portugueses que eu uso. Acho que tratar a língua portuguesa como se fosse o lince da Malcata ou o burro de Miranda é, no mínimo, menosprezá-la. Encarar os do meu ofício como doentes com lúpus ofende, em primeiro lugar, os doentes com lúpus. Logo a seguir ofende os do meu ofício, por olhar para a nossa língua como coisa débil, que carece de proteção. A nossa língua é mais antiga do que a música pop e irá sobrevivê-la de largo. Quando este género musical – que já apresenta sinais de um lento definhar – perecer enfim, a gargalhada de Gil Vicente há de se ouvir um pouco por todo o lado, desde Nashville a Liverpool. “A mim ninguém me salva”, pensará. Policiar esta questão é algo para lá de absurdo e é, mais do que tudo, inútil. Porque, como dizia Caetano Veloso a respeito de questões parecidas com esta em 1968, “Deus está solto”
(Artigo publicado na VISÃO 1253, de 9 de março, de 2017)