Passado um ano, regresso ao tema da morte assistida, aqui, nas páginas da VISÃO. Um ano em que se falou e discutiu a eutanásia e o suicídio medicamente assistido como nunca tinha acontecido entre nós. A opinião pública está agora muito mais informada e esclarecida. Reflexo do que acontecia no País, o tema chegou ao Parlamento.
O debate vai prosseguir, dentro e fora do Parlamento. Esta semana foi conhecida uma primeira proposta de despenalização da morte assistida, da responsabilidade do Bloco de Esquerda, e outras estão anunciadas. Propostas que são um grande passo em frente porque permitem centrar a discussão nos modelos e nas soluções concretas apresentadas para a despenalização da morte assistida em Portugal, retirando espaço ao discurso alarmista, mistificador e obscurantista sobre o que se passa nos países que a legalizaram.
Num ponto todos estão de acordo: qualquer decisão deve ser precedida de um amplo debate.
E, acrescento, um debate sem pressas mas, também, que não pode eternizar-se e transformar-se num estratagema destinado a adiar e impedir uma decisão.
Há, no entanto, quem não queira que se discuta a morte assistida e se esforce por deslocar a discussão para duas outras questões de natureza estritamente política, sem dúvida importantes mas cujo tempo não é este: a despenalização é ou não inconstitucional e deve ou não ser sujeita a referendo? A despenalização da morte assistida viola ou não a Constituição? São conhecidas opiniões de ilustres constitucionalistas num sentido e no outro. Consumir o nosso tempo a discutir o assunto não parece ser coisa muito útil nem oportuna. Em devido tempo, aprovada a despenalização, o Tribunal Constitucional – que é quem avalia a conformidade constitucional das leis – cá estará para resolver essa controvérsia, se para tal for convocado por quem o pode fazer.
Também sobre o referendo há opiniões muito díspares. Contudo, quem o defende, quem o exige, mais do que discutir a sua necessidade, deve é tratar de o promover. Se a líder do CDS/PP, a deputada Assunção Cristas, acha que deve haver referendo, então, de que está à espera para o propor na Assembleia da República? E os cidadãos que proclamam que só o referendo pode legitimar uma decisão, de que estão à espera para começar a recolher as 75 mil assinaturas necessárias para o referendo ser uma realidade?
Claro que, hoje, as vozes que há um ano se ouviram reclamando um referendo, apenas motivadas pela esperança de assim travarem a despenalização, estão a baixar o tom à medida que cresce o seu receio de uma consulta popular poder não lhes ser favorável, como sugerem vários estudos de opinião entretanto conhecidos. Por exemplo, Marques Mendes que foi o primeiro a promover a ideia do referendo, lembrou-se agora que o melhor é mesmo fazer um livro branco sobre a eutanásia, ignorando olimpicamente o muito que está estudado e publicado sobre o tema. De que se lembrará amanhã para que nunca se possa decidir?
Não são os cálculos sobre o seu resultado que me fazem ser contra a realização de um referendo. Aliás, sou dos que pensam que o sim à despenalização recolheria mais votos. Mas recuso com muita convicção que direitos individuais possam ser sujeitos a referendo. Por uma razão simples: um direito é, por definição, uma faculdade a que todos podem recorrer – sublinho todos – portanto, não pode ficar sujeita a que uns tantos cidadãos possam impedir todos os outros de usufruir desse direito. Sendo despenalizada a morte assistida, consagrado que fique na lei esse direito, ninguém é obrigado a recorrer à eutanásia mas, também, ninguém fica proibido de o fazer, nos termos em que a lei vier a permiti-lo. É assim com todos os direitos.
E recuso que o referendo tenha mais legitimidade democrática que uma decisão do Parlamento.
A nossa democracia representativa é parlamentar e não referendária, tem a sua legitimidade no Parlamento e não no referendo. Na democracia constitucional em que vivemos há 40 anos, os direitos individuais estão consagrados na lei e não foram referendados. Não vejo por que razão há de ser diferente no caso da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido.
Vamos, então, ao debate, sem subterfúgios, nem fantasmas. Em nome da dignidade na vida e na morte.
(Artigo publicado na VISÃO 1250, de 16 de fevereiro, de 2017)