Não tive tempo para organizar nada. Tenho um hostel marcado para três noites em Pequim e sei que tenho que estar em Macau no dia 25 de outubro para um concerto. Hoje é dia 30 de setembro e tenho voo às 15:30h. Há esta mistura de receio e ansiedade que vai crescendo até ao dia da viagem para um sítio longe e fora de pé. Gosto de sentir este “agora”, para amanhã sentir outro diferente, olhar à volta e pensar “estou na China, estou em Pequim”. Lembro-me da primeira vez que cumpri este ritual.
Estava no segundo ano do curso de Arquitetura quando eu e um colega meu nos inscrevemos numa viajem organizada pelo núcleo de arquitetura a Berlim. Antes daquele dia nunca tinha pensado em Berlim como destino provável numa viagem de turismo. Havia um mistério que envolvia aquela cidade; Imagens perdidas na minha memória de um muro a cair com um tempo cinzento e muita gente a festejar, filmes da segunda guerra, um videoclip dos U2 com carros velhos com desenhos no tejadilho, os MTV Vídeo Music Awards, gente de cabelo em pé e às cores. Berlim era um mistério total para mim e naquela altura era um estaleiro gigante, como se a guerra tivesse acabado há 15 dias. Apaixonado pela cidade, e perdido no meio de todo aquele imaginário, pensei: “estou em Berlim” e senti-me a pessoa mais cool do mundo. Desde aí que cada vez que me atiro para um destino mais improvável faço esse exercício de consciencialização e acho que é sempre o princípio do descanso que para mim é viajar. Vou sozinho desta vez. A imagem que tenho da China deve ser tão diferente da real que anseio pela imagem que vou trazer de volta. Falaram-me de Datong em Shanxi, da Mian Mountain, de Hangzhou, de Wuzhen, mas tudo isto são apontamentos de dicas que me mandaram, porque o passo seguinte só o vou saber no fim do passo anterior. Gosto de não saber, de não planear, de confiar. Gosto de perguntar, de saber dos pequenos segredos que mais ninguém sabe e que muitas vezes me levam aos sítios mais especiais. O que estou a gostar de sentir desta vez é que até a comunicação vai ser um desafio, até a alimentação vai ser um desafio. Esta curiosidade de saber o que estará do outro lado de um país tão fechado ao nosso mundo faz-me bem. A disponibilidade de aceitar o que vier, é já um escudo de serenidade para o que aí vem. Se há lição que aprendi das minhas viagens foi que qualquer coisa vai correr mal, mas que de uma maneira ou de outra, tudo se resolve (pelo menos até agora). Às vezes penso nesta maneira de viajar como uma terapia, ou antes, como um retiro de onde sei que vou tirar os devidos frutos. Acho que muita gente iria achar um pesadelo ir para um país como a China sem nada planeado, por não ser confortável, por não ser prático, porque preferem ir para um “resort” com uma pulseira de plástico e beber “Gins”; No entanto, sei que se por alguma razão não houvesse outra alternativa e se a vida os pusesse naquela situação e o próprio corpo fosse obrigado aceitar que sim, que estavam na China e que não havia “Gins”, tudo o que viesse a seguir ia com certeza ser bastante mais profundo do que três semanas numa praia paradisíaca com uma senhora a massajar-lhes as unhas dos pés. É por isso que, do sítio confortável onde tenho a sorte de me encontrar, gosto de saltar para aventuras que em princípio não vão ser assim tão confortáveis, porque não quero perder o instinto, para não envelhecer por dentro, para não estagnar, para aprender, para me renovar. Sempre gostei mais da definição de crise como “uma oportunidade” e acho que Portugal é um bom exemplo disso: a maneira como na adversidade temos a capacidade de nos reinventarmos, de reagir. Enquanto que o conforto muitas vezes nos leva para um sono conformado e para um adormecer lento até à velhice, obrigarmo-nos a sair do lugar é um constante exercício de rejuvenescimento.