Dois comissários europeus, Jyrki Katainen e Corina Cretu, apresentaram-se esta segunda-feira em Estrasburgo para um “diálogo estruturado” com o Parlamento Europeu sobre a eventual suspensão dos fundos comunitários para Portugal e Espanha. Tudo não passou de uma farsa, , como lhe chamou a eurodeputada Marisa Matias. Uma farsa com momentos de drama, de humor e, acima de tudo, muita dissimulação. No final, prometeram-nos umas cenas dos próximos capítulos.
Foi uma farsa, desde logo, porque não houve um verdadeiro diálogo. As partes não comunicaram uma com a outra, comunicaram uma para a outra. De um lado, os eurodeputados manifestaram, em coro, a sua veemente oposição à suspensão dos fundos comunitários. Tirando apenas duas ou três vozes desafinadas, o Parlamento Europeu apresentou-se em uníssono, afirmando bem alto que sancionar Portugal e Espanha seria injusto (atendendo aos esforços já realizados por estes países), incoerente (com a anulação das multas decida em julho) e contraproducente (pois afetaria o crescimento económico e dificultaria a consolidação orçamental). Os eurodeputados portugueses, da esquerda à direita, repetiram o mesmo refrão: Portugal não merece ser castigado! Do outro lado, alheios ao sentimento geral da plateia, os comissários não saíram do guião. Literalmente não saíram do guião.
Sabemo-lo porque o guião tinha sido divulgado, três dias antes, pelo site Politico.eu. De acordo com esse documento interno, preparado pelos serviços da Comissão Europeia, aqueles responsáveis deveriam mostrar-se muito compreensivos e apaziguadores. E assim fizeram, reconhecendo os pesados sacrifícios suportados pelos cidadãos portugueses e espanhóis. Mas desenganem-se os espetadores menos atentos: o tom moderado não resultava de qualquer atenuação da ortodoxia financeira, nem implicava abdicar do animus sancionatório. Bem pelo contrário.
Eis-nos, então, chegados à dissimulação. É que, não obstante a postura delico-doce, os comissários insistiram na necessidade de suspender os fundos para Portugal e Espanha. Só que pretenderam fazer-nos crer que, a aplicarem tal suspensão, o farão contrariados, apenas porque tem de ser, porque as regras assim o exigem, porque é automático, porque não há alternativa (onde é que já ouvimos isto?). Sucede que não é bem assim.
Como o eurodeputado Pedro Silva Pereira denunciou, as regras em vigor não preveem qualquer patamar mínimo para a suspensão dos fundos, pelo que são perfeitamente compatíveis com uma suspensão de 0 €, isto é, existe margem legal para não congelar os fundos comunitários para Portugal e Espanha. Como tal, se a Comissão avançar com esse congelamento, fá-lo-á em resultado de uma opção política (e não fruto de uma aplicação mecânica da lei), no uso pleno da sua discricionariedade de atuação.
Em suma, os comissários vinham preparados para se esconder atrás da lei (ou, mais concretamente, de uma determinada interpretação da lei). Mas foram desmascarados e obrigados a assumir o odioso da sua decisão. Uma decisão que não só não é imposta, como é até contrariada pelos critérios – designadamente de proporcionalidade – estabelecidos na legislação europeia.
Outro caso flagrante de dissimulação consistiu no argumento, repetido até à exaustão, de que a suspensão dos fundos comunitários não terá qualquer efeito lesivo, porque se trata de uma medida temporária – passível de ser levantada mal os Estados-Membros demonstrem que o Orçamento para 2017 cumpre as metas acordadas (quem é que falou em chantagem?) – e que, de resto, só diz respeito a projetos futuros, sem comprometer o pagamento dos projetos em curso. Só que, neste caso, foi a própria Comissão Europeia que se desmascarou a si própria. No documento interno revelado pelo Politico.eu (p. 4), aquela instituição reconhece que a suspensão dos fundos irá adiar a realização de investimentos; e que, no caso de Portugal, a mera incerteza sobre a possível suspensão do Fundo Social Europeu já está a provocar um abrandamento visível do investimento. Mais uma vez, os comissários tentaram convencer-nos que estamos perante uma decisão inócua, platónica, meramente simbólica, quando na verdade sabiam bem o impacto desastroso que esta discussão já está a ter na economia nacional.
O “diálogo estruturado” de ontem teve ainda momentos de humor, como aquele em que o comissário Katainen garantiu – para gargalhada geral – que a suspensão dos fundos comunitários não é uma sanção, mas um incentivo. E teve momentos de drama, como aquele em que se percebeu que a Comissão Europeia pretende mesmo cortar o acesso aos fundos comunitários por parte de um país, como Portugal, cujo investimento público depende em 78% desses mesmos fundos.
Fundos de coesão, é desses que se trata. Os quais serão talhados para que não haja mesmo dúvidas sobre o que está em causa: uma absoluta falta de coesão no seio da União Europeia.
Agora seguem-se as cenas dos próximos capítulos, que terão como protagonistas os ministros das finanças de Portugal e Espanha, chamados a apresentar os seus argumentos. Este “diálogo” de “estruturado” tem pouco, mas está para durar.