Estávamos a falar de canções. Estávamos a falar de uma canção sobre um faroleiro. Sobre a letra da canção que falava de um faroleiro e de como seria feita a felicidade daquele homem no extremo da sua falésia. Qual a importância do seu papel no desenrolar dos mares. Qual a sua perceção dessa importância e como medir os seus níveis de serenidade, orgulho e humildade. Depois falámos dos rios…
quer dizer, falámos das margens dos rios e que sem elas os rios não existiam. De como seria ser como margem, ciente do sua função, desprendida de qualquer necessidade de reconhecimento, porque o mais importante seria o rio correr. Depois falámos daquele amor maternal, inconsequentemente fiel, inconscientemente fiel, sereno, crente, plenamente seguro do seu lugar e feliz por ser exatamente o que é. Falámos de como os valores se transmitem como testemunho, de mão em mão, pelo tempo fora, como um rio. Falei de uma canção nova em que digo: ‘como árvore quero crescer’ e dá a imagem de uma árvore parada, segura, serena, mas viva e cuja vida em forma de fruto, flor, seiva, se espalha pelas veias dos campos em volta e muito mais longe ao longo do tempo pelos pássaros e ventos e tempestades e eu como árvore sempre ali, a crescer com o mundo, a aprender, a apreendê-lo, mas sem deixar que o mundo mude a textura da minha raiz. O campos a arder, e as casas, as cidades e as florestas e os meus ramos a arder, e eu como árvore a aceitar, sem ceder. Como será ser isto? Conseguir esta humildade de não querer nada para si a não ser a certeza de estar no sítio certo, a fazer o que é suposto, e ser-se grato, só. Tudo isto parece meio absurdo, mas quando estamos a compor e começamos a falar de canções, acreditamos naturalmente que as palavras e tudo o que elas transportam é realmente importante, e que uma canção, embora comece em mim, ou em outra pessoa, é como um navio gigante que pode dar a volta ao mundo descarregando em cada porto apenas o que lhe é devido.
E isto é verdade, e sabemos disto porque não somos só quem carrega o barco, somos também quem está no porto à espera que outros barcos nos tragam outras palavras que possam fazer parte da nossa casa. E era tão bom que isto nos chegasse. Dar, e estarmos abertos a receber.
Depois fui almoçar e ao almoço falou-se de fidelidade, de compromisso, de como seria possível ser-se fiel não pela apatia dos sentidos mas pela força de uma ideia: A ideia de que a fidelidade a um compromisso nos faz dormir melhor e em paz. Não estávamos a falar só de relações amorosas e da sua efemeridade crescente, mas sim da fidelidade àquilo que éramos antes do mundo nos cicatrizar. Fidelidade àquele princípio em que acreditávamos na pureza de tudo e na ausência de maldade e orgulho em que todos queriam o melhor para toda a gente, sem rancores escondidos ou invejas recalcadas.
Depois li sobre a Telma Monteiro, e o Nelson Évora e pensei em tantos atletas que lutam contra a apatia do próprio país, fascinado e cego com dinheiro e futebol e sem perceber que um país cresce através da exaltação dos seus valores refletidos em coisas como um salto em comprimento, ou uma luta de judo, ou uma canção.
Depois pensei em mim, e que tenho de deixar de pensar em mim, e pensar mais no objectivo final e na distância do salto. Voltei à arvore e à fidelidade, voltei amor, à serenidade, às margens do rio, ao faroleiro, e voltei ao meu trabalho.
Este texto pode parecer vazio de sentido, mas prometo que qualquer coisa há de ecoar no porto, como me ecoou a mim durante a semana.
Hoje estou em Santa Maria nos Açores. Foi a primeira ilha a existir, há mais de 8 milhões de anos. É preciso coragem.. sozinha no meio do Atlântico, uma rocha com o sonho de um Arquipélago.