Hoje, no dia em que 51,9% do Reino Unido resolveu virar um pouco mais as costas à Europa, achei por bem falar de amizade. Claro que o Reino Unido sempre esteve mais ou menos de saída, mesmo quando entrou. Sempre esteve no canto da mesa, como quem aparece para o jantar mas não lhe apetece muito estar ali até ao fim, não vá alguém querer ter aquelas conversas chatas sobre a vida e ganhar confianças para lá das convenientes. Se por acaso ficasse até ao fim de jantar, devia ser daqueles que pede a conta discriminada: “Eh pá eu não pedi café nem sobremesa!” Para mim, a amizade ou é ou não é. Amizade a meio termo é só inquietante, inconsequente. Enquanto que no amor ou na paixão há sempre a possibilidade de se perder a calma ou a noção dos valores e ficar tudo uma confusão e quando se acorda já se partiram uns pratos e foi-se longe demais; a amizade tem de ser serena, consciente, segura. Enquanto que no amor ou na paixão há sempre o perigo de nos perdermos num labirinto infinito de tensões como míseros bichos fracos e desorientados e ter instintos maldosos por ciúme ou dor ou crises de confiança; a amizade tem de ser o lugar seguro com que podemos sempre contar mesmo quando tudo à volta parece ruir. Tive a sorte de aprender desde cedo que esse estado de alma existe: a amizade como rocha firme, inabalável! Não tem a ver com assiduidade ou interesse, se for preciso vive num sítio guardado onde se mantém imutável até voltar a ser chamada, como um pacto imaterial. Sou no entanto contra a amizade isenta, a amizade inerte, convenientemente desatenta. Acho que se for preciso um amigo tem que ser duro para ser verdadeiro. Tem que pegar o outro pelos colarinhos, para o corrigir, para o orientar, para não o deixar perder a direção. Amigo não pode ficar só a olhar, e amigo não pode trair outro amigo, porque isso não faz parte, porque isso não existe. Amizade é como uma equipa em campo onde todos sabem as suas posições e lutam no mesmo sentido, e, se por acaso alguém cai, vêm os que forem precisos para o voltar a levantar. Na amizade são todos iguais. Se alguém erra, assume.
Amizade é forte, e resiste.
Já me estou a desviar do assunto. Havia esta ideia de amizade, como uma equipa. Havia no princípio este grupo de amigos que se juntou, cada um com a sua história, cada um com as suas características. Distinguiam-se pela estatura, raça, credo, posição em campo, mas partilhavam principalmente os mesmos valores e era isso que os unia. Havia no princípio esta ideia que era luminosa de tanta gente parecida a caminhar no mesmo sentido, ajudando-se uns aos outros. Todos gostavam da ideia, todos apertaram as mãos inteiras; o Reino Unido deu um dedo. Acontece que ao longo do tempo alguns foram caindo no caminho. No princípio todos se ajudavam, mas o tempo foi passando e, como sempre, o veneno correndo. Não que alguns não soubessem andar, mas por vezes um mau posicionamento pode fazer dum bom jogador um peso para a equipa. As posições não se mudaram. Foi assim que aos poucos, baixinho, pelos corredores, começaram a lançar responsabilidades uns aos outros. Aos poucos, já mais alto, as responsabilidades já eram castigos em vez de direções inteligentes, e esta ideia que era jovem e fiel começou a parecer velha, manhosa, e menos apelativa.
O problema não foi da ideia, porque essa é intemporal. O problema foi o que fizeram desta amizade, como a foram desgastando, traindo. Hoje a equipa perdeu só o elemento que infelizmente sempre esteve de saída. Mas para sobreviver, para resistir, têm de voltar ao princípio e perceber a força do começo. A ideia tem que voltar a ser luminosa, apelativa, para que ninguém se sinta de menos, ou mais.