A resposta do presidente da APCMG – Associação de Medicina de Proximidade, José Mário Martins, enviada à VISÃO:
Nos últimos dez dias falou-se mais de eutanásia do que nos últimos dez anos. Falou-se muito e, em muitos casos, falou-se mal, desconversou-se. Bastou o Manifesto “Direito a morrer com dignidade” lançado sem pré-aviso ou autorização dos quartéis-generais partidários mas com a intenção de aproveitar o novo ciclo político para a prepotência de matriz conservadora vir a terreiro com tudo o que de pior tem a política portuguesa: a politiquice e a cretinice.
O plano é simples, não discutir a eutanásia mas o referendo e intoxicar a discussão com argumentos terroristas e imbecis.
Foram muitos os elogios à iniciativa daquele Manifesto pelo mérito de lançar o debate. Mas a hipocrisia política tem destas coisas: os mais elogiosos são precisamente aqueles que nunca fizeram nada para que o debate acontecesse. E que, agora, mais fazem para que ele seja afogado na onda referendária lançada por Luís Marques Mendes, no seu comentário dominical na SIC.
Desta vez, Luís Marques Mendes veio dar um recado, não veio dar uma novidade ao País. Como poderia ser novidade se o PSD sempre que está contra qualquer coisa e não quer que se saiba, tira da cartola um referendo? Sim, Marques Mendes deu o recado que convinha a Marcelo: sem referendo, nada feito, melhor dizendo, porque é isso que pretendem que dele resulte, com referendo, nada feito.
O referendo serve para abafar a discussão da morte assistida e para, mais tarde, condicionar e inviabilizar a sua aprovação. Na retórica demagógica, os argumentos são como a pastilha elástica, esticam para um lado e para outro, explicam uma coisa e o seu contrário. Dizem os autoritários anti eutanásia que o Parlamento não tem mandato, nem os deputados competência, só o povo pode decidir sobre matérias tão decisivas e complexas, são assim os países democráticos. Não me recordo de ouvir essas vozes a reclamar um referendo à integração na UE ou à entrada no euro, certamente questões menores aos seus olhos. Nem os ouço a desconfiar da democracia da Bélgica, do Luxemburgo ou da Holanda, esses exaltantes faróis da democracia europeia, onde a morte assistida se tornou lei sem qualquer referendo.
Não se referendam direitos individuais, direitos humanos.
Não se referenda a liberdade, o direito ao trabalho ou à saúde. Um direito que é universal, que é de todos, não pode ser recusado ou retirado por alguns, isso é o contrário da democracia. Só na aparência, o referendo à eutanásia ou a qualquer outro direito individual é democrático. Pelo contrário, é uma cortina que esconde a ditadura de uns tantos sobre todos os outros. Nenhuma maioria, tangencial ou expressiva, pode impedir seja quem for e quantos forem de decidir sobre este bem que é absolutamente fundamental e intocável de cada um decidir sobre a sua vida. A vida de cada um só ao próprio pertence.
Recusar esse direito é transformar a vida de cada um no seu próprio gulag.
É esta compulsão autoritária que leva os mais fervorosos liberais, alguns dos que passaram os últimos anos a reclamar “menos estado” e a pugnar pela “libertação da sociedade do jugo asfixiante do estado”, a defender que o direito à morte assistida “não é uma questão individual mas sim um assunto que diz respeito ao estado”. Paulo Portas deve ter corado de vergonha (ou de irritação) ao ouvir esta heresia da boca de uma deputada do seu partido. Deixemos o referendo de lado e vamos à discussão dos problemas do fim de vida. Sem terrorismo nem imbecilidades.
Os portugueses não se aterrorizam com as eminências universitárias que comparam a eutanásia à pena de morte ou que fantasiam sobre micro elétrodos que introduzidos no cérebro induzem a nossa vontade. Nem acham que recusar o direito à eutanásia seja comparável à obrigação de usar capacete nas motos ou uma medida para poupar dinheiro ao SNS ou, ainda, uma lei supérflua porque o suicídio já é livre, como dizia o bastonário da Ordem dos Médicos, numa infeliz intervenção televisiva. O debate dispensa bem esta argumentação underground.
Em Portugal, muitos morrem em péssimas condições, numa agonia carregada de sofrimento inútil. Este é o problema, é isso que interessa discutir e solucionar. Para, como disse Rui Rio, acabar com a crueldade.