Moro no Porto, sou portuguesa, de uma geração muito influenciada pela cultura anglo-saxónica, filha e neta de gerações muito influenciadas pela francófona e diria que em termos televisivos vivo no Brasil. Quando faço uma busca no Google com a palavra “Porto” associada a outra coisa qualquer, como “pizzaria” ou “dermatologista”, os algoritmos retribuem sugestões algures em Porto Alegre (no Rio Grande do Sul). E nas minhas rotinas quotidianas, pouco rotineiras, uma das poucas coisas realmente quotidianas, é o sagrado episódio da novela da Globo. Sou uma lusófona, disposta a tatuar o sacrossanto cliché “a minha pátria é a língua portuguesa”, passado de Pessoa para pessoa, até chegar a mim e fazer todo o sentido.
Do Pato, de João Gilberto, ao Beijinho no Ombro, de Valesca Popozuda, da verborreia psicadélica de Clarice Lispector, às tirinhas com as ressacas da Rebordosa, das entrevistas de Marília Gabriela, à viralidade dos “boatos” de Marilac, fui vivendo com o Brasil dentro de casa e com o português do Brasil dentro do ouvido. Esse português com pimenta, musicado pela deliciosa falta de respeito pelo português canónico. Esse português elástico, inventivo, jovem, em que o calão da semana passada é sempre obsoleto e vale tudo menos cristalizar. Esse português idiomático, em que um chato é um “mala sem alça” e tudo “acaba em pizza” (ou seja, impune).
Posto isto (e estou a escrever “posto isto” porque os brasileiros que eu conheço acham que os “tugas” começam assim todas as frases), recebi um convite para participar num disco de Rap, com Mc’s e produtores do Brasil e de Portugal, a editar nos dois países em 2016. Como diria Chico, “fiquei contente” e aceitei, ora pois! (E este “ora pois” está aqui porque os “zukas” que eu conheço acham que nós terminamos assim todas as frases). Foi por isso que fiquei fechada num estúdio durante os últimos 10 dias, juntamente com o Emicida, o Rael e o Valete (meu compatriota).
Trabalhei duro. Aprendi muito. Diverti-me mais. Foi um processo conjunto, de brainstorming, escrita e gravação, em que ficámos mais amigos, apesar de todas aquelas horas no mesmo espaço sem janelas. Horas a fio com a nossa música, que é como uma língua franca, até quando a língua é (quase) a mesma. Horas a fio para perceber a forma rápida, intuitiva e lúdica como escrevem o Emicida e o Rael, como surfam nas melodias imediatas e leves que vão cantarolando espontaneamente, como curtem. Enquanto nós (eu e o Valete), mais cerebrais, questionadores e às vezes até inseguros, ponderamos as palavras uma a uma, como se sentíssemos a responsabilidade muito maior do que o processo.
No fim, nenhuma das abordagens destoou e fomos todos festejar aquele encontro, o último dia de estúdio, contentes. Jantámos juntos e tivemos a enorme sorte de sermos levados aos fados pela Carminho. Chegámos a Alfama, pequena sala forrada a azulejos antigos, luz de velas e guitarras. Ela cantou para nós com uma simplicidade solene. Nada de plumas coloridas, gargalhadas ou pés dançantes. Só a sobriedade da nossa forma de catarse: as palavras, as cordas e uma mulher vestida de negro.
Aí percebi, que quem quer que tenha escrito aqueles versos, para serem carpidos assim, naquela beleza delicada e um pouco lúgubre, nunca o poderia ter feito de leve, sorrindo, como quem está num eterno flirt com a vida. Não pode ter sido fácil. Há de ter sido neste nosso desconforto, do nosso jeito hesitante e sério, com o nosso português discreto. O meu.
Percebi que é aí que sou mais portuguesa, por muito que me inspire de Brasil. Nesse “respeitinho” pelo peso das palavras, na forma cerimoniosa como as trato, com o carinho familiar, mas cortês, com que se tratam os avós, porque “de longe muito longe, um povo as trouxe”, já dizia Sophia (que era também o nome da minha avó) e porque nelas depositamos todas as emoções, como em frascos preciosos, que ninguém quer deixar cair.