Ainda era cedo, talvez. Mas foi onde nasceu a ideia deste livro: reta final da campanha das legislativas de 2024, numa reunião no Expresso onde se decidiam os temas que iríamos tentar explorar naquelas últimas semanas. Recorde-se: o governo de António Costa tinha caído, às mãos de uma investigação judicial que entrara pela porta do Palácio de São Bento, assim como noutros ministérios. Montenegro era candidato, Pedro Nuno tinha assumido a sua cadeira de sonho no PS. André Ventura era ainda, nesses dias, apenas o líder do terceiro maior partido, partindo de apenas 7% dos votos (cerca de 400 mil) e 12 deputados.
Na semana anterior, porém, tínhamos recebido os dados da nossa sondagem com perplexidade: cerca de 20% dos portugueses admitiam votar no Chega naquelas eleições. Hesitámos na formulação – era um salto enorme, inesperado naquela dimensão, apesar de todos sentirmos que era inevitável (para mais, naquele contexto) um novo salto do jovem partido de direita radical. Mas fizemos o que devia ser feito: era a manchete da edição semanal.
Foi nesse contexto que a ideia surgiu naquela reunião: e se fizéssemos o exercício de antecipar o que faria o Chega no governo? A pergunta ecoou sem resposta na sala de reuniões, onde nos observa sempre, da parede, uma fotografia dos três fundadores do Expresso no momento da primeira edição – que Pinto Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto de Carvalho criaram ainda em ditadura. A maioria dos editores e dos diretores presentes sentiu que aquele trabalho não devia ser feito, usando bons e justos argumentos. Era ainda cedo, talvez.
Alguns dias depois, sabemos agora, o Chega conseguiu os 18% naquelas legislativas. Um milhão, cento e setenta mil votos. 50 deputados. Um resultado nunca antes visto num terceiro partido, mesmo acima do PRD de 1985. Na Revista da edição seguinte, a Ângela Silva faria um trabalho ilustrado por uma pizza dividida em três quase de forma simétrica, explicando que o nosso sistema político tinha acabado de presenciar uma revolução. Confirmou-se a cada passo dos meses seguintes: três grandes partidos, um populista entre eles, sempre dançando um tango que não era confortável para ninguém.

O telefonema da Porto Editora apareceu no final desse ano, incitando-me a escrever um livro sobre o desafiante momento que vivem as democracias. Eu tinha passado os últimos anos a ler sobre o tema, sem conseguir adivinhar que a dúvida que me assaltava em países como os EUA, a Hungria e a Polónia chegaria aqui tão rapidamente. Mas preparava-me para refletir toda essa informação num adiado doutoramento. Hesitei, mas o incentivo da minha mulher deu-me o impulso: aceitaria escrever sobre o tema, teria apenas de pensar bem na estrutura e no registo. A introdução nasceu pouco depois, por instinto, porque tinha o pressuposto bem claro: o que acontece se o Chega ganhar? Decidi ficcionar esse dia, numa espécie de distopia, apenas para que o leitor sentisse aquele como o seu dia, o dia de uma enorme surpresa.
Depois disso, o livro ficou em suspenso. Apareceu a Spinumviva – dossier que o Expresso acompanhou de forma irrepreensível – e depois a crise política. Não tinha ainda encontrado o tempo, nem o registo para o que teria de escrever. Mas naquele dia 18 de maio, ao conhecer os resultados, percebi que não tinha mais como esperar. Foi por aí, numas curtas férias, que desenhei a estrutura, capítulo a capítulo, e que percebi que o registo só podia ser aquele em que me sinto confortável: seria uma análise perspetiva, sim, mas inteiramente jornalística. Na prática, seria como escrever sete newsletters densas, mas divididas, que pudessem ler-se consoante o interesse do leitor, mas com pés bem assentes na realidade que, entretanto, avançava de forma muito mais rápida do que poderíamos esperar.

Naqueles meses, Trump tinha voltado à Presidência dos EUA, com muito mais força e poder do que antes. Naqueles meses, o Chega, por cá, tinha-se tornado o segundo partido populista com a progressão eleitoral mais rápida da União Europeia.
Foi assim que começou o Como Proteger a Democracia, que está nas livrarias desde o final da semana. Que não é, nem podia ser, um livro sobre o Chega. É sobre a direita radical, claro, mas também sobre nós. Explico-lhe brevemente.
Há muitas notícias, muitos artigos, muitas reportagens, estudos, entrevistas, conversas, até já há alguns livros sobre o Chega e André Ventura. Li muitos deles e são úteis, alguns mesmo bons, para nos dar elementos sobre este novo mundo em que entrámos. Mas excetuando as investigações jornalísticas, ou algumas investigações académicas, a discussão pública sobre o partido segue o espírito dos tempos: há alguns (poucos) livros que são elogios a Ventura e ao movimento que ele criou, e do outro lado muitas críticas, emocionais, apaixonadas, mais ou menos racionais.
O que senti que fazia falta era um exercício diferente: sem prescindir dos factos, mas tentando distanciar-me, perceber e explicar tudo o que está a mudar nas nossas vidas com estes partidos de direita radical que tanta influência e peso eleitoral ganharam no Ocidente, nos últimos anos. É por isso que o livro começa por falar da “nossa desilusão”, que só depois perspetiva os primeiros dias de um governo do Chega com base nas nossas regras, assim como nas promessas e nos discursos de Ventura. É por isso que depois procuro “Um padrão” nos países onde essa direita radical está no poder, para demonstrar que riscos existem, para quem e que impacto terá cada decisão.
Olhando para as decisões, para o método, explico friamente que devemos separar neles – nos populistas – o que são ideias legítimas (gostemos dessas propostas ou detestemo-las) das que podem representar riscos sérios para as democracias. Porque o maior perigo está naqueles passos, naqueles discursos, naquelas ordens desses governos que ultrapassam as regras, minam as instituições, destroem décadas ou séculos de História. E porque a democracia não é só a possibilidade do voto livre, são essas regras, tradições, instituições que nos permitem conviver uns com os outros de forma livre, ainda que divergindo completamente. Leis que permitem a convivência e nos garantem a expectativa de que, um dia, outra eleição pode mudar as coisas.
Neste livro, parto daí para explicar o rasto que essas decisões mais perigosas deixam nos países e em nós, cidadãos. Há um capítulo, também, para contar como correram as experiências dos outros partidos para lhes tirar peso, país a país – é onde entram Luís Montenegro e a sua AD. E outro para demonstrar como o famoso “teto” para o crescimento do Chega não para de subir. O capítulo final, sem querer estragar-lhe o suspense, é mesmo o desafio que paira sobre todos nós: se é assim, se o Chega pode realmente vencer uma das próximas eleições; se nesse momento Ventura poderá legitimamente ser o primeiro-ministro de todo o País; nesse momento, o que nos resta fazer? O que podem fazer os outros partidos, os empresários, as universidades, cada um de nós enquanto cidadãos? E os média?
Escrever o Como Proteger a Democracia foi um exercício de realismo, mas também de contenção. Eu sou jornalista e devo a quem me lê o máximo rigor possível e a maior isenção de que sou capaz. Na verdade, nesta profissão somos escrutinados por todos – serei seguramente lido pelos maiores críticos de Ventura, assim como pelos seus apoiantes. Procurei, como sempre procuro, ser justo. Não perante uns e outros, mas perante os factos. Porque só assim respeito a minha função. E porque só assim conseguirei (espero) chegar a tantos outros leitores e cidadãos, aqueles que se mantêm firmes na vontade de ler, ouvir, refletir para decidirem os seus próximos passos, o próximo voto, ou o seu lugar no mundo. Foi especialmente nesses de nós que pensei ao longo destes meses, naqueles que resistem aos algoritmos, à radicalização absoluta e que mantêm “liberdade para pensar” – o cada vez mais oportuno lema do jornal em que orgulhosamente trabalho.
Ao fim destas 227 páginas, espero ter cumprido pelo menos esse objetivo. No estranho mundo em que estamos, acredito firmemente que cada um de nós tem um pequeno papel a desempenhar, na reconstrução de um sítio que seja melhor para vivermos, juntos e em são convivência. E sim, acredito também que, não sendo já cedo,“ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”*.
*Do mestre Manuel António Pina