Como este será o meu último texto nesta rúbrica, e como procurei sempre potenciar um espaço aberto e meditativo sobre problemas contemporâneos entre Budapeste e Lisboa, nada melhor que ter uma convidada especial para nos deixar uma derradeira reflexão sobre os 10 anos que passaram desde o 12 de Março (de 2011), dia que nos apresentou, ainda nos tempos dos PEC’s e logo antes da Troika, as vozes de uma “geração à rasca” e uma panóplia de ruídos cívicos, reivindicativos e multicoloridos que se espalharam então pelas ruas de Portugal.
Foi um bom par de anos a escrever com um pé em Budapeste e outro em Lisboa, deambulando sobre um alargado conjunto de tópicos que passaram desde leituras alargadas do quotidiano provenientes da capital húngara, sobre o advento de novas tecnologias e o potencial disruptor das mesmas, passando pelas análises comparativas entre as capitais destes dois países (Portugal e Hungria), duas irmãs com tantas similaridades.
Deixo assim, ainda antes de vos passar o texto da Paula, três últimos comentários. O primeiro para realçar a necessidade de atenção às novas tecnologias, nomeadamente tecnologias que nos podem trazer mais confiança, transparência e accountability a um conjunto de setores e serviços (públicos e privadas) relacionados com Big Data, como o são os em torno da identidade digital, grande logística / supply chain, contratação pública, metadata, energia, pegada carbónica/ economia circular, etc. No concreto, refiro-me aos benefícios que a tecnologia blockchain pode aportar e à importância estratégica de seguir e acompanhar de perto a execução dos projetos que serão apoiados e desenvolvidos no âmbito do PRR e do Next-EU, colocando ao dispor do público ferramentas de monotorização independentes e agnósticas, de forte base tecnológica, capaz de providenciar essa mesma transparência e accountability ao setor público para a generalidade de população, contribuindo assim para uma maior confiança das instituições.
Um segundo comentário para realçar a importância de manter atenta a observação à Europa Central, região tantas vezes ausente do foco mediático e hoje centro de tanta agitação política, em especial no que respeita a leituras iliberais dos sistemas e instituições democráticas. Este é um debate central sobre o que será o futuro da nossa União, pois confrontam-se hoje dois modelos antagónicos sobre que valores sustentam o projeto europeu: os do nativismo nacionalista e os do cosmopolitismo multicultural. E Budapest, sob tutela de Viktor Orban, tem vindo a desenhar o mapa para quem pretende lhe seguir o exemplo, e operar transformações institucionais que consagrem leituras iliberais da sociedade, como tantos movimentos e propostas populistas que tem brotado da nova (ultra / extrema) direita nacionalista. Neste sentido, e considerando que o partido do senhor Orban acabou de entregar os papeis de divórcio à família do PPE e que certamente terá na manga uma qualquer nova aventura com aos seus irmãos polacos (PiS) e restante extrema-direita europeia, importa seguir-lhes os passos com atenção, pois desta plataforma sairão certamente as linhas orientadoras para os Chegas, Vox, e Ligas desta Europa nossa e respetivas estratégias e soundbites de ataque ao poder.
Finalmente, o meu último comentário recai no âmbito da política local, saudando a candidatura do Carlos Moedas a Lisboa. Simboliza esta, para mim, o regresso da política à capital, pois espera-se uma campanha acesa e construtiva, assente no confronto democrático de propostas e visões concorrentes do que poderá ser a Lisboa do pós-pandemia. Em confronto Fernando Medina, incumbente, presidente com obra e gestão provada (especialmente nesse último ano), e Carlos Moedas, talvez o quadro da oposição mais bem qualificado para desenvolver uma alternativa à gestão da capital baseada numa moderna apropriação da social-democracia, assente na inovação, no cosmopolitismo e no humanismo social. Será esta uma eleição definitivamente a seguir.
As últimas palavras para agradecer o convite de aqui escrever, e a quem convidei para partilhar esta crónica, nomeadamente a Helena, o Tiago, e agora a Paula Gil, ativista e umas das organizadoras do 12 de Março (de 2011). Palavra à Paula:
RASCA É A PRECARIEDADE
10 anos passaram desde o Protesto da Geração à Rasca. Eu tenho mais cabelos brancos, algumas chamadas “rugas de expressão”, sobretudo de preocupação para onde nos encontramos a caminhar. Mas, no essencial, pouco ou nada mudou.
Logo após a manifestação, assistimos a uma radicalização do poder político, na altura personificado no Passos Coelho e na famigerada PAF, a coligação de direita que agravou as condições de toda a população (excepto o chamado 1% em quem ninguém toca) usando para isso sistematicamente a Troika como desculpa. Foi o Governo que se orgulhou de ser mais troikista que a Troika, enquanto todas as pessoas do país viam os seus rendimentos a diminuir, o trabalho a ser cada vez mais precarizado, o desemprego a aumentar, os apoios sociais a escassear, as pessoas (“comodistas”) a serem empurradas para fora do país “à procura da zona de conforto”. A PAF contribuiu até para termos uma extrema direita com expressão eleitoral, sustentada por um poder económico que se alimentou dessa exploração dos mais pobres, dos mais carenciados e dos mais vulneráveis e que, hoje, se manifesta em todos os pilares do estado social: a saúde, a educação, a habitação…
Durante este período não parou a contestação nas ruas. Algumas das maiores manifestações do nosso país, como o Que Se Lixe a Troika, apesar de completamente ignoradas pelo Governo e por aqueles que diziam representar-nos, demonstraram o descontentamento da população e foram essenciais durante o período da PAF, não só para manter a resistência e a oposição às medidas, mas para demonstrar um país que não se revia no programa que foi implementado. Há quem diga que contribuíram para a criação da Geringonça. Não sei se assim será.
Hoje em dia, no essencial, a situação laboral de precarização não mudou. Muitas vezes me perguntam como se sente esta geração a viver agora, num período tão curto, uma segunda crise. A verdade é que nunca saímos da primeira. Continuamos a confundir melhoria económica, com melhoria das condições dos trabalhadores.
Na verdade, não se entende porque mantemos uma situação de precariedade laboral, seja com recibos verdes, seja com contratação através de Empresas de Trabalho Temporário. Hoje em dia, a contratação está tão liberalizada que qualquer pessoa poderia ter um contrato até por meia dúzia de horas, precavendo alguma segurança laboral e impondo a contratação legal. Em vez disso, surgem “coisas” como a Ubber, onde as pessoas exercem funções sem condições de trabalho, sem protecção social, já deixaram de ser “colaboradores” (esse termo do liberalismo que quer parecer que, toda a gente, participa da riqueza produzida de forma igual), não são trabalhadores, são “utilizadores da plataforma”.
No momento de emergência que vivemos, muitas pessoas (sobre)vivem sem apoios ou com apoios mínimos tendo em conta a avaliação dos seus rendimentos, seja por acumularem dívidas de pagamentos sociais que deviam ser feitos pelos seus patrões, seja porque são vitimizados por ganharem o ordenado mínimo.
Trabalhadores “essenciais” que não veem essa glorificação repercutida no recibo de rendimento ao final do mês. Outras viram as suas funções reduzidas, perderam ilegalmente o direito aos subsídios de alimentação quando se encontram em teletrabalho, viram os seus rendimentos reduzidos, o seu horário de trabalho aumentado, aumentaram as suas despesas com o pagamento de água, luz e internet que, sustentando o seu trabalho, deveriam ser pagos pelo patrão. Mesmo as pessoas que se encontram efetivas podem, agora, ser facilmente despedidas. Vimos o período de experiência laboral aumentar para 180 dias (6 meses para facilitar as contas).
O relatório do forum económico mundial (que organiza as conferências de Davos), fala no surgimento dos pandemials (pág. 39), pessoas que estão agora a sofrer as consequências desta pandemia e sem grandes perspetivas no futuro com impactos no acesso ao emprego, à educação, com impactos graves na saúde mental. Este relatório aponta como óbvio que esta é mais uma “geração perdida”. Devíamos antes perguntar-nos o que faremos para o evitar em vez de prevermos a sua inevitabilidade?
Li a reportagem do primeiro-ministro António Costa ao jornal Público, na sexta-feira. dia 5 de março. Afirma que “A segunda vulnerabilidade, que a crise deixou bastante evidente, tem a ver com as fragilidades e a precariedade do mercado de trabalho. Grande parte das dificuldades que tivemos em encontrar medidas de apoio social tem a ver com a desregulação profunda do nosso mercado de trabalho e, portanto, por muitas das pessoas atingidas pela crise não se reconduzirem [enquadrarem] a nenhuma das figuras típicas do apoio social. Todo o esforço de invenção e reinvenção das várias derivadas do lay-off correspondem, no fundo, à necessidade de assegurar subsídio de desemprego a quem não tem direito a ele, porque não tinha um verdadeiro contrato de trabalho, mas que estava a trabalhar.”
A situação atual de pandemia veio apenas demonstrar algo que dizíamos há 10 anos: a completa e total desregulação do mercado coloca toda a gente numa situação de insegurança e vulnerabilidade social, sem apoios, sem segurança, sem resposta, sem perspetivas de futuro e, mais uma vez, é sobre nós que recai a responsabilidade e o pedido de resiliência.
10 anos depois, ao ler a entrevista ao Público, é curioso que parecemos todos concordar. Falta agir.
Paula Gil, ativista e (co)organizadora do 12 de Março.