Não sei o que pensam os outros emigrantes, mas para mim, o meu pesadelo pessoal é ter que lidar com instituições ou serviços portugueses. Se calhar é por estar na Alemanha, um país onde serviços e instituições (salvo algumas pouco honrosas exceções, nomeadamente, e assim de repente, as empresas de telecomunicações e o cuidado de crianças) funcionam relativamente bem e descomplicadamente.
Mas com Portugal é sempre uma dor de barriga. Durante anos sofri ataques de pânico perante a necessidade de me deslocar ao consulado português para tratar de algo. Tinha que tirar a manhã de férias (desde que fecharam o de Frankfurt vou a Estugarda que fica a duas horas de comboio) e preparar-me para a tortura psicológica de lidar com os requisitos dos serviços e a disposição dos funcionários, e os papéis que faltavam. Entretanto, confesso que a coisa tem melhorado, mas ainda assim o motivo pelo qual os meus filhos não têm ainda a nacionalidade lusa é puro medo dos processos… Nos primeiros anos em que cá estive, trabalhando como consultor para uma empresa portuguesa, eram as Finanças que me davam os calafrios… enfim, isso também melhorou quando deixei de estar profissionalmente ativo em Portugal.
Mas o que me leva a escrever sobre este tema hoje foi um evento mais recente em que tive que interagir com uma empresa de eletricidade. Como muitos emigrantes, também eu sonhava em ter um cantinho próprio, num pedaço de paraíso nacional, para trazer a família de férias com mais regularidade e para um dia, quem sabe, lá me aposentar. E assim há coisa de dois anos decidimo-nos pelo Alentejo e um pequeno monte no meio do nada.
Para meu espanto, desde a escritura a seguros e contribuições fiscais, tudo correu sem qualquer dentada.
Depois fiz um contrato para fornecimento de electricidade. Dei conta que no mercado havia agora uma série de novos fornecedores, mas ignorando se seriam de confiança optei por um mais tradicional. E diga-se já de partida que recebi a eletricidade logo do princípio, mas…
Ao fazer o contrato com um representante local pedi uma potência base de 4,6 kVA. A casa tinha até à altura menos, ou seja 3,4 kVA. A senhora alertou-me que deveria contactar a companhia para lá mandar um técnico ver se o aparelho no quadro podia dar a potência contratada.
Algum tempo depois, de férias em Portugal contactei a companhia de eletricidade, explicando apenas o conteúdo do parágrafo anterior. Passei uma hora ao telefone num ping-pong entre a área Comercial e a área de Distribuição, até que um funcionário me jurou a pés juntos que a potência que eu estava a usufruir era exactamente a que eu tinha contratado e que não era preciso fazer nada, nem mandar lá ninguém.
Fast forward um ano e tal e neste tempo continuamos a ter o disjuntor a disparar de cada vez que mais ou menos tínhamos uma máquina de lavar, com uma cafeteira ligadas ao mesmo tempo. Estamos a contratar um empreiteiro para umas obras de renovação num anexo e eu menciono que ele poderia ter problema de potência a usar máquinas elétricas na obra. Ele pergunta mas quanto é que tem? E eu digo 4,6 kVA. E ele resolve abrir e olhar para o quadro, tira uns parafusos, afasta o painel e diz: “Olhe que o seu disjuntor só está a dar 15 Amperes (isto é 3,4 kVA)”. Mas eu estou a pagar por 4,6 kVA desde há quase dois anos. “Pois, tem que cá chamar o técnico para cá vir trocar”. Ok…
Ligo para a companhia, explico a história 4 ou 5 vezes, e é do género (isto não é uma transcrição real da conversa, mas a sua essência, como eu agora lembro):
– Mas você já tem 4,6 kVA no contrato!
– Eu sei, mas o disjuntor, o aparelho no quadro, só deixa passar 3,4, é preciso ir lá alguém trocar.
– Mas este sitio pode ter até 6,9, você quer aumentar?
– Não! Quero que mudem o aparelho para receber o que estou a pagar!
– Mas quanto é que você quer?
– Quero 4,6!
– Então altera-se isso já aqui!
– Não!!!! Já está alterado! O meu contrato já tem 4,6!
– Então o que quer que faça?
– Que mande o técnico!!!
Bem, quarto de hora disto até que a senhora deixa-se vencer e resolve mandar o técnico. Então eu digo:
– Oiça, eu moro na Alemanha, vou lá estar no dia tal, podemos marcar a visita nesse dia?
– Só podemos pôr aqui a preferência, depois vai receber um email, se a data não for esta liga-nos outra vez…
– Ok… E o técnico vai encontrar a casa no meio do nada?
– Pode deixar um numero de telemovel?
– Posso, é alemão…
– Ah, não, os nossos técnicos não ligam para números estrangeiros (será a empresa assim tão forreta?)
– Ok, então aqui vai o número da minha mãe que vai lá estar comigo no local.
Visita combinada. Eu recebo o email com a data certa. A minha mãe recebe um telefonema a confirmar a visita entre as tantas horas e a confirmar o número de telemóvel onde vai ser possível contactá-la se o técnico não encontrar o caminho. Chega o dia fatídico. Lá estou eu de propósito, ansioso, ao fim de quase dois anos, para finalmente receber a potência que me é devida. As horas passam e nem sinal de técnico. Chegando ao fim do período previsto toca a ligar para o número de cliente… o que se passa a seguir é puramente Kafkiano… quinhentas perguntas de identificação depois:
– O técnico ainda não chegou, pode ver o que se passa?
– Sim, vou ver, aguarde um momento… (música: Só precisas de acertar, não tem nada que enganar, e assim mesmo, sem cantar vais encantar, em play-back, em play-back, em play-back…)
– Obrigado por aguardar, é só mais um momento… (em play-back, em play-back… repete isto mais 5 vezes)
– Obrigado por aguardar, mas se isto tem a ver com uma visita técnica, tem que ligar para outro número.
– Mas foi com este número que marquei e confirmei a visita!
– Mas nós não sabemos onde andam os técnicos, tem que ligar para a Distribuição, vou dar-lhe o número.
– Mas se eu ligar para este número vão-me dizer onde anda o técnico?
– Concerteza, eles é que sabem.
Ligo para a Distribuição… mais quinhentas peguntas de identificação… os dados na Distribuição não batem com os do Comercial, mas conseguimos passar por isso… explico outra vez a história…
– Mas o que você quer é alterar a potência do contrato! Ligue para o Comercial!
– Não! (a ficar histérico) Eu quero o técnico! Onde está o técnico?
– Não sei, não tenho como saber isso. Aqui está que a visita está pendente de cliente, ou seja o técnico já lá foi!
– Não foi, eu estive aqui o dia todo, ninguém apareceu e ninguém telefonou para o número combinado.
– Mas aqui diz que já foi!
– Mas não, minha senhora, então se eu estive aqui o tempo todo!
– Então ligue para o Comercial, foram eles que marcaram a visita.
– Já liguei!! Por amor de Deus! Há 5 minutos atrás garantiram-me que você é que sabe do técnico!
– Eu só tenho informação que isto está dependente de cliente, ou seja, telefone para o Comercial.
– Não posso, não vai adiantar! Porque eles disseram para ligar para a Distribuição! Eu não posso estar a resolver os vossos problemas de organização! Eu pedi um técnico e não me interessa quem é que sabe dele! Veja lá onde está o técnico!
– Eu não sei onde está o técnico, nem posso ligar ao técnico, isto é tudo encaminhado por detrás, a gente não tem como saber!
– Então quem sabe?
– Ligue para o Comercial!
– (10 minutos disto depois) Oh minha senhora, isto não vai lá, deixe-me falar com um superior! (mais música, aguarde mais um momento, mais 20 minutos, vou passar a chamada… a chamada cai… estava-se mesmo a ver…)
Ligo outra vez para o Comercial. Identificação… trá-lá-lá… explico a história, mais os últimos desenvolvimentos com grande esforço para suprir a frustração e raiva, esta senhora ainda não tem culpa de nada…
– Ah… então temos que fazer um novo agendamento…
– Mas eu estou cá de propósito! Vim da Alemanha…
– Temos que fazer outro agendamento…
– Mas telefone ao técnico, diga-lhe para cá vir esta tarde!
– Não podemos fazer isso, tem que ser outro agendamento!
– Mas eu não moro cá, não posso estar a fazer agendamentos a torto e a direito sem garantia que as pessoas aparecem! É um caso excepcional, faça alguma coisa…
– Pois, mas não posso fazer mesmo mais nada… tem que ser um novo agendamento, alguém há de lhe ligar para marcar…
Mais vinte minutos disto, eu a implorar que só queria o técnico que me tinha sido prometido… a senhora visivelmente frustrada também por não ter meios de fazer mais nada… terminamos a chamada com uma reclamação que pode me render 20€ pela inconveniência… eu psicologicamente e fisicamente esgotado, acuso injustamente e rudemente a coitada da senhora de incompetência quando me estava na realidade a referir à empresa que não dispõe os empregados de meios de ajudar os clientes. Sinto-me mal por não ter resolvido nada e ter tratado as pessoas de forma tão rude. O dia estragado. O incrível nisto é que a empresa só tem um dever que nem é complicado: dar ao cliente aquilo que este contrata, mas é incapaz disso.
No dia seguinte recebo um email da empresa com os novos dados do meu contrato e outro com um questionário a pedir a minha valiosa opinião sobre a forma como tinha sido atendido! Se isto não fosse uma revista tão respeitosa tinha escrito agora aqui um palavrão.
Noutras crónicas já escrevi como Portugal está na moda, e como, visto de fora, é um país muito apetecível por todas as suas características e por todo o seu potencial. Mas esta forma displicente e inefetiva de prestar alguns serviços, que parece entranhada na nossa cultura corporativa, em particular em serviços públicos, é arrasadora. Se fosse um alemão no meu lugar, que nem falasse a língua como deve de ser, acharia que estava num manicómio. Os processos são complicados, ninguém toma responsabilidade por nada, o cliente é que tem que andar atrás do fornecedor, e as empresas põe corpos na linha da frente para receber os ataques dos clientes sem meios de darem luta, são comida para canhão. Reforço novamente o ponto de que outras burocracias relacionadas com a aquisição desta propriedade correram surprendentemente bem, portanto não parece ser um mal incurável, é só falta de vontade…