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Para muitos não será estranho viver não muito longe do sítio onde nasceram e cresceram. Para essas pessoas, imagino que as mudanças vão acontecendo aos poucos, quase impercetíveis. Para mim que vivo longe dos sítios da minha infância, os regressos são sempre acompanhados de turbulência emocional e as mudanças saltam logo à vista. Especialmente quando há certos cheiros…
Eu cresci na Madeira, e já passaram 14 (demasiados) anos desde a última vez que lá estive. O Funchal que levo entranhado, é o Funchal dos anos 80, com todas as suas características e cheiros daquela época. Eu morava muito perto do Mercado dos Lavradores , que era na altura um mercado à séria (hoje é uma atração turística). A minha mãe ia lá regularmente à fruta e aos legumes, e às vezes ao peixe. O cheiro a peixe sentia-se na rua, nas águas que limpavam o átrio e escorriam pela rua. Quando lá se entrava apanhava-nos de rompante. O perfume das frutas era inebriante. Ia-se buscar pão à Mariazinha que ficava na zona Velha, e como ali cheirava a pão fresco. Às vezes esperava-se um bom bocado para se ser atendido e que tortura era inalar as bolas de Berlim e outros pastéis acabados de sair do forno. E correr para casa com o pão ainda quente para logo lhe barrar manteiga a derreter.

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Descendo à Avenida do Mar cheirava a algas a cozer ao sol e a mijo (mijava-se contra o muro, e em especial nos recantos do muro onde se podia sentar). Cheirava a diesel dos paquetes e ao fumo dos autocarros que dali partiam para todos os cantos da ilha. Chegando ao pontão onde agora é a marina, cheirava a amendoim assado. Em direção à Sé cheirava ao café das esplanadas e às flores frescas que se vendiam em alguns locais na Avenida Arriaga. Logo ali, entrando no Bazar do Povo, cheirava a tanta coisa, mas sobretudo às madeiras que cobriam o chão e as escadas. Se a memória não me trai, era na Rua do Sabão que o nosso tio Horácio tinha uma loja de tecidos e coisas de costura, e como aquilo cheirava (os meus primos lembram-se), sobretudo os recantos onde havia pó e coisas antigas. Passando a ribeira de Santa Luzia (e como ficava bela quando as buganvílias floriam), e ali naquela ruazinha que se chamava Direita, se não me engano, havia um armazém de farinhas, e o que aquilo ali cheirava a farinha, depois de lá passarem os camiões havia cantinhos no chão brancos que pareciam neve. A minha mãe comprava-nos sapatos numa loja na Rua Fernão de Ornelas, e como aquilo cheirava a cabedal.
O colégio, que ficava na Pena, com um vistaço sobre a baía, era rodeado por bananeiras por quase todos os lados. Mas a festa dos cheiros vinha de ir visitar a pocilga e galinheiro que as irmãs mantinham numa parte das traseiras. Que pivete maravilhoso. Ainda hoje recordo com nostalgia. E recordo também a cozinha das irmãs, quando lá se passava, sentia-se logo o cheiro da última refeição lá cozinhada (sopa com legumes?).
E por falar em comida, ainda recordo, com tanto arrependimento, o cheiro voluptuoso do peixe pescado na noite anterior a grelhar na grelha de um restaurante à beira mar, para os lados do Porto Moniz, que eu me recusava a comer, por não gostar de peixe, ah se o tempo voltasse atrás. E que dizer do cheiro a espetada, naquele restaurantezinho à beira da estrada, para os lados do Monte, onde era grelhada a lenha em pau de louro, e quando cá fora estava um nevoeiro e um frio do caraças?

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Quando fazia calor ia-se tomar banho à Barreirinha, ao Lido ou ao Clube Naval. E quem se lembra de como cheiravam aqueles balneários? Como explicar? Deixa lá, quem lá esteve lembra-se. Lembro-me de andar descalço naquele chão feito de pedras redondas e molhadas ou de cimento. O cheiro do mar, sempre presente.
O parque de Santa Catarina era um oásis de calma no meio da cidade, onde todos os cheiros se misturavam. Dali se olhava o porto e se sentia a brisa marítima, sentados na relva.
Os verões eram passados em casa dos meus avós, na Figueirinha, em Oeiras. Das janelas voltadas ao Tejo e à ponte, depois do apito, vinha o cheiro a borracha queimada dos travões do comboio. Eu, que dormia no sofá na sala, lembro-me do meu avô que acordava cedo para abrir a mercearia, sentar-se ali à mesa a beber o seu café de cevada com leite e a fumar o primeiro (de muitos) cigarro do dia. Eu fingia que ainda dormia, mas essa imagem ainda me deixa com tantas saudades dele. A praceta cheirava a cocó de cão. A praia de Paço d’Arcos cheirava a areia molhada e Nívea. A mercearia do meu avô, essa cheirava a fruta madura, a leite e a pão. Tinha uma casinha de banho minúscula que cheirava mal. Eu gostava quando a minha avó abria a arca frigorífica e cheirava a peixe congelado, porque lá dentro também havia aqueles geladinhos feitos de sumo. Debaixo da caixa registradora havia caixas de rebuçados e chupas. Hoje é um cabeleireiro e como aquilo me faz confusão. Será sempre a mercearia do meu avô.
Sempre que lá passo pela minha avó, espeto o nariz aos cantos em busca das pontes olfáticas com o passado, como quem procura artefactos arqueológicos. Mas ou o meu nariz já não é o que era, ou nós demos cabo dos cheiros. Que falta me fazem esses cheiros todos.
Nota: Fotos da Madeira colecionadas e curadas no grupo “Madeira quase esquecida” no Facebook