
Memorial a Kate Sheppard
Sorridente, bem disposta, mestre em manter a paz em qualquer situação, em não levantar ondas apesar das convicções fortes. Em preferir os bastidores em vez do palco. Em atribuir sucesso aos outros e ter vergonha de reconhecer o próprio. Estas qualidades louváveis escondem o lado submisso que herdei da cultura portuguesa.
Talvez nunca me tivesse apercebido se não me tivesse mudado para um país com uma perspectiva diferente sobre o papel das mulheres na sociedade.
Mas antes de avançarmos, uma nota importante. A intenção deste texto não é a crítica ou a divisão, mas sim a partilha de uma visão para um futuro mais inspirador, mais unido e mais libertador para todos. Um futuro que está à espera de acontecer, e que vai encontrando cada vez mais espaço no nosso presente, e que um dia ninguém questionará.
O tecido social em que estamos imersos é difícil de navegar. É feito de teias complexas de valores e História que se cruzam e separam, onde o velho vai dando lugar ao novo, com tanto de palpável como de invisível.
A mudança não ocorre sem tempestades ou vítimas ou percalços. Ou mesmo sem a ilusão da volta temporária à idade das trevas, quando a resistência à mudança mostra o seu lado mais feio. Mas não nos deixemos enganar. A evolução é inevitável, e futuros novos e expansivos dão lugar às versões restritivas do passado. Mais cedo ou mais tarde – não deixemos as aparências convencerem-nos do contrário.
A questão da igualdade de géneros não é excepção.
Olhando para trás, sei que a minha viagem até à Nova Zelândia (com Londres como o primeiro porto) não foi acidental. Especificamente a passagem por Christchurch, a terra de Kate Sheppard, a principal responsável pela conquista do direito ao voto das mulheres Neo-zelandesas (as primeiras no mundo), em 1893.
Aqui, nesta terra de mulheres fortes, a igualdade que se respira quase me passou ao lado – não tivesse eu confrontado a herança pessoal e cultural que me mantinha a voz calada, cheia de verdades que me entupiam a garganta e me prendiam a alma. Encorajada, curiosamente, por um homem forte, maravilhoso e entendedor de que, lado a lado, e de voz cheia, podemos criar mais e melhor.
Somos largamente o produto da cultura e das pessoas que nos rodeiam.
Miúda (como tantas outras), cresci rodeada de mulheres que são tudo para todos e nada para si. Cheias de magia e sonhos que, se viram a luz do dia, ficaram muito aquém do seu potencial. Caladas, envenenadas por um rancor subtil que passa quase despercebido, resignadas, de cartas encostadas ao peito para se encaixarem no papel que herdaram. Os seus parceiros? Desatentos, alheios às necessidades e magnificência das mulheres que tomam pela mão e relutantes em abdicarem dos privilégios que a perspectiva redutora do papel das mulheres lhes permitem.
Ambos criados por mulheres sobrecarregadas, submissas, que tiveram que guardar para si o poder que sabiam que tinham dentro de si e as paixões que lhes incendiavam o espírito. E homens que, ou não sabiam melhor, ou deixaram a insegurança (e, quem sabe, o egoísmo) falar mais alto que o amor.
Estes são os frutos que se vão colhendo da cultura que, em passado recente, encorajava o comportamento de macho latino e assumia a inferioridade da mulher, sem que se medissem as suas implicações.
As mulheres que brilhavam livremente à minha volta contavam-se pelas mãos. Parceiros à altura, também. Mas os seus exemplos marcaram-me e fizeram-me acreditar que, certamente, haveria um lugar onde estes seriam a norma e não a excepção. E que, um dia, em breve, esta seria a realidade para todos.
Estava certa.
Estas mulheres vivem a vida nos seus termos e perseguem os seus sonhos sem pedirem permissão além da sua, sem colocarem as necessidades de todos antes das suas. Mulheres cuja chama faz avançar os tempos que vivemos. E fazem-no sem sacrificarem o amor e a compaixão, e sem abdicarem do seu lado feminino. Acompanhadas por parceiros magníficos, do mesmo calibre.
Na Nova Zelândia, são elas e eles a norma e não a excepção.
Com elas aprendi que a desigualdade começa comigo e com todas as maneiras, muitas delas subtis, em que ajudo a perpetuá-la. Com todas as vezes que digo sim, quando é mesmo não, quando me calo quando sei que quero falar, quando escolho jogar pelo seguro em vez de arriscar. Com todas as vezes em que coloco a subserviência à frente da minha vontade.
A liberdade está pronta para nós. Mas, também nós, temos que estar prontos para ela.
Descobri que a igualdade se cria na prática, passo a passo, na vida pessoal. Com o que toleramos ou não, com o que escolhemos dizer ou não, com o que escolhemos defender ou não, com aquilo em que escolhemos acreditar ou não. É um esforço conjunto, sim, mas o poder imediato está nas nossas mãos, nas nossas acções e na história que criamos com as nossas vidas.
A igualdade começa com o que permitimos dos outros, com os relacionamentos que escolhemos, como reagimos à vida, com as oportunidades que perseguimos, com a coragem e a compaixão, com as condições que negociamos, com os limites pessoais que estabelecemos e fazemos respeitar. E com quem influenciamos à nossa volta. Afinal, é a única coisa que podemos controlar.
É na inspiração do que nos rodeia…
O poder mais precioso que temos nas mãos é o exemplo que damos às gerações seguintes. Não com o que dizemos, mas com o que demonstramos aos futuros homens e mulheres que se cruzam nas nossas vidas.
Eis o que observo, a partir desta plataforma de igualdade no canto sul mais remoto do mundo desenvolvido; apontar dedos só cria mais divisões e não serve ninguém. A transição que procuramos é feita de diálogo e colaboração, de entendimento e respeito. E não há aliados mais poderosos para tornarem esta visão possível que os homens maravilhosos que fazem parte das nossas vidas. Juntos, conseguimos mais.
Sejamos uns para os outros, deixemos as generalizações no campo de batalha. Disse Kate Sheppard “All that separates, whether race, class, crede, or sex, is inhuman, and must be overcome.” Together, acrescento.