Hoje amanheceu frio em Nampula, amanheceu com um rosnar de demasiadas memórias do 20 de Junho – o dia mundial dos Refugiados, com um desequilíbrio que não ajuda a montar a vontade de voltar a ajudar a limpar o lixo para baixo dos pobres tapetes de plástico que nos servem como realidade gourmet.
Trabalho há demasiados anos na consciência de que uma grande parte do trabalho humanitário é uma consequência e uma pequena percentagem de compensação de um capitalismo voraz por um mundo mais desenvolvido. Não é por nada e talvez seja por tudo que em muitos casos, os dólares para os projectos humanitários e de desenvolvimento sejam estabelecidos somente depois de serem negociados acordos comerciais. E quando maior for o roubo, perdão, o investimento, mais ajuda haverá para contruir mais uma escolinha, ou construir mais um fogão comunitário. Segundo uma investigação e recolha e análise de dados de algumas organizações, os países africanos receberam cerca de 162 mil milhões de dólares em 2015, sobretudo em empréstimos, “ajuda” e remessas pessoais. Mas no entanto, no mesmo ano, cerca de 203 mil milhões de dólares foram “retirados” do continente, seja diretamente através de multinacionais repatriando lucros e movendo ilegalmente dinheiro para paraísos fiscais, ou por custos directamente relacionados com o “preço pago” pelas mudanças climáticas infligidas pelo resto do mundo ao continente Mãe. Fontes The Guardian e Aljazeera.
Parece que falo do âmago de uma loucura ditópica e talvez seja verdade. O mundo do 1% dança na repetição das ideias, em valsas de arrogância teórica de algumas das melhores universidades do mundo, na vaidade dos títulos e das medalhinhas ao peito, em cocktails onde discutimos o precário estado do mundo, em eventos privados para batermos nas costas do poder e assim ficarmos de esperança de termos dado mais uns passos na Sua direcção.
Dormimos na eloquência da impudência dos gostos e sabores instamgrados mas sempre com uma consciência catolicamente virgem. E quando automaticamente nos levantamos, automaticamente ligamos os rádios nos programas mais automaticamente divertidos, como comprimidos entre o ansiolítico e os batanetes.. e lá seguimos nós automaticamente no sprint para as 5 da tarde que passaremos em ciclos infinitos entre a 2ª ponte do Feijó e a circunvalação.
No fim do mês recebemos um insuficiente salário (o qual temos de agradecer encarecidamente) para podermos comprar todas as falácias civilizacionais que somos obrigados, de forma a não sermos excluídos pelos círculos das marcas e da não pobreza. Consumimos o último produto para o qual a sociedade não teve moda suficiente para consumir e prontamente fazemos filas para pagarmos por comida à base de organismos geneticamente modificados, para genética e contentamente avançarmos para um penhasco civilizacional. Chamamos a tudo isto – Desenvolvimento. Quase ao bom estilo fight club em que temos prazer em consumirmos os excessos, pois este é sinal de desenvolvimento. O plástico e mais plástico é sinal de desenvolvimento, a individualização de todas as opções é sinal de desenvolvimento, ou não conseguiríamos sobreviver sem o nosso pacote de açúcar individual, o nosso individual pacotinho de leite, de manteiga, de bolachas ou mesmo de sonhos realizados aquando da compra do último perfume da melhor marca que é produzida aos milhões para que dessa forma nos sintamos de facto únicos. Como conseguiríamos viver sem nos sentirmos a última coca cola da esplanada à beira mar?
Por conseguinte.. e em contas matematicamente muito simples, a europa não produz para o que consome. No marasmo da repetição – o nosso conforto na nossa bolha civilizacional é baseado na roupa do Bangladesh, nos telemóveis de Guangzhou, nos componentes da Indonésia, no óleo de palma de todos os milhões de hectares de flora e fauna da ásia e de áfrica que anualmente destruímos, nos cosméticos que insistentemente experimentamos em animais para termos a ilusão que nos pareceremos menos como eles, o café e chocolate que consumimos que foi colhido pelas mais habilidosas e escanzeladas crianças ou mesmo pelos minérios que barbaramente sacamos de África sem dar contas a ninguém. Mas não se pense que tiramos tudo e não damos nada. Com a certeza que em troca damos armas e balas a muita gente, ou o tal fogão comunitário, ou não fosse o nosso peito estar cheio de ar quando exigimos democracia nos outros continentes que nada sofrem com a nossa contínua sede de controlo e amansamento de povos com os ditadores que também lhes oferecemos em tabuleiros de slow food.
Claro que a Europa não é a má e o resto do mundo é bom, claro que temos gente boa e má em todo o lado.. só que nós por vezes esquecemo-nos disso. O impacte do mundo ocidental no resto do mundo não é pacífico, não vivemos nas rimas do festival da canção, tal como não somos o povo iluminado. Falta ao mundo ocidental ter noção de si mesmo, ter noção que não existem acções que não retornem reacções. Enquanto não tivermos total claridade nos processos de origem da matéria prima até ao produto final, na claridade da origem das armas que aparecem em grupos terroristas, saber como é produzido tudo o que consumimos, ou mesmo questionarmo-nos como chegam tantos Toyotas novos ao “Estado Islâmico” sem haver uma resposta clara do fabricante sobre o assunto (Brendan McGarry – Managing Editor Military.com). E quem diz armas, diz todo o resto.
Acabar com a fome e com a pobreza extrema em África não é difícil, não é por falta de dinheiro, nem pela triste caridade que continuamos a apadrinhar. Claro que África precisa de mais fogões comunitários, mais escolas, mas isso tudo são as migalhas que precisamos neste momento. África necessita justiça e equidade, África e todos os seus Estados devem ser respeitados como parceiros e respeitados com todas as diferenças e semelhanças que compõem uma diversidade fabulosa e única que tanta cor dão ao nosso planeta.
Desenvolver não significa normalizar, estandardizar ou mesmo banalizar. Desenvolver deve significar o potencializar e enriquecer humana e naturalmente sustentável toda uma sociedade onde haja a promoção dos processos democráticos participativos, a cidadania plena, o respeito pela diversidade, a educação, a equidade entre toda a gente, com incentivos para que mais mulheres possam chegar onde quiserem chegar sem a pressão ou a opressão societária e onde as crianças possam crescer com saúde e com um sorriso pejado de amor cada vez mais humano e menos material.
Hoje amanheceu frio em Nampula, amanheceu com um rosnar de demasiadas memórias do 20 de Junho – o dia mundial dos Refugiados, e mesmo com toda uma revolta interior sobre as injustiças que todos os dias continuam a criar mais refugiados, tal como no Congo, no Burundi, na Palestina, no Yemen, Síria, Afeganistão, Líbia, Somália, Myanmar entre tantas outras realidades.
Hoje fui voluntário para a organização Scalabrini no Campo de Refugiados de Maratane no Dia Mundial dos Refugiados. A grande maioria dos refugiados são meus irmãos e irmãs do Este do Congo – Lagos Kivu e Tanganika, Burundi, Rwanda, Somália (entre outros). Foi um prazer colaborar com esta organização que trabalha sobretudo na Nutrição e na Educação e ainda que intensas todas as conversas e interacções com diferentes refugiados de zonas do mundo que conheço tão bem, não deixou de ser um dia algo emocional entre estes guerreiros e guerreiras.
Nas celebrações, apesar de termos contado com discursos importantes de muitas autoridades nacionais e internacionais, acabaram por ser demasiadamente longos e assim que chegaram ao fim, ainda que houvesse espectáculos preparados pelos diversos grupos de refugiados, apenas o ACNUR e os Scalabrini ficaram. Chapeau a quem aqui trabalha todos os dias (incluindo a organização Scalabrini e também o pessoal do ACNUR – UNHCR) mas sobretudo a toda esta força quase inesgotável na luta pela sobrevivência e na esperança de um dia voltarem a sorrir.
A força e resiliência de toda esta gente, acabou por compensar e por me inspirar a não desistir de continuar a tentar contribuir para que as injustiças se transformem em liberdades e equidades num mundo efectivamente melhor e mais justo
Feliz dia dos Refugiados, que diz que foi há uns dias atrás, mas que nos dias de hoje é todos os dias.