Tecnicamente falando, a Jessica tem idade para ser minha filha. Entrou no Verão como estagiária, e no fim do ano passado recebemos a notícia, na newsletter semanal, de que tinha sido admitida como “associate” . Quer isto dizer que continua a fazer exatamente a mesma coisa, só que garante um salário que lhe permite partilhar casa com mais 5 ou 6 pessoas num bairro da periferia. Felicidade! Mas não é sobre isso que eu quero falar. Voltando à Jessica, que deve ter pouco mais de 20 anos. Loira, baixota, muito simpática e muito britânica, muito “posh”. Tem aquela pronúncia que não engana ninguém. Se fosse rapaz provavelmente teria um anel de brasão no mindinho. Como não é, usa os aneis que quer nos dedos que quer. Se calhar até tem um no mindinho, mas do pé.
A Jessica aparece todos os dias no escritório à mesma hora e cumpre sempre o mesmo ritual. Chega, despeja casacos, cachecois, carteiras, “headphones” e malas e segue para a cozinha, de onde vem com uma caneca a fumegar. Dentro da caneca que tem o nome dela escrito por fora a letras garrafais está o verdadeiro tema deste artigo. Uma papa esbranquiçada, cheia do que aparentam ser caroços, ainda com o leite mal misturado. Aquilo mete um nojo desgraçado. E o cheiro também não é o melhor. Mas a Jess lambe-se com aquilo. Diz que é de aveia, mas que lhe deita uma colherzinha de mel. Come até ao ponto em que a colher bate no fundo da caneca. Nesse momento ainda rapa mais, até ao último caroço daquela argamassa, como se esta fosse a sua última ceia. Quando começo a ouvir a luta entre a colher e o fundo da caneca preta da Jess, percebo que já terminou o seu pequeno almoço, e fico radiante porque não tarda está a sair, ela e o cheiro, em direcção à cozinha.
Porridge.
É este o nome com que a Jess, e milhões de outros habitantes da ilha, começam os seus dias. Com sementes, sem sementes, com mel, sem mel, quinoa ou milho, mas sempre a escaldar e sempre com aquele aspecto de que a aveia não quer cá misturas com o leite. Tudo come porridge. Em casa, nos “Pret a Manger” ou nos “Nero” ou no escritório, há de todos os tamanhos e ingredientes. A ferver, a fumegar, a espalhar um cheiro leitoso e carocento. Escusado será dizer que já provei Porridge, há uns anos, quando vim de visita ao meu irmão. A minha cunhada comia aquilo diariamente ao pequeno almoço e um dia decidi ser valente, respirar fundo, e mandar uma colherada. Numa frase, sabe ao que cheira.
A Jess vai, lava a caneca e volta a sentar-se no seu posto para aí ficar imóvel até ao fim da tarde –que aqui chega por volta das 3. Aproveito a distração causada pelo ritual matinal para ir lendo as gordas cá da terra. A desengonçada Theresa May lá conseguiu fazer passar o Brexit no parlamento, já que os partidos decidiram, e bem, não votar contra uma decisão que foi tomada, e mal, pelos eleitores britânicos. Já se percebeu que vai ser um hard Brexit e não um soft Brexit. Resta saber o que “hard” significa. Por cá, imprimem-se formulários para o cartão de residência – cada um com mais de 90 páginas e a custar largas dezenas de libras, fazem-se perguntas aos recursos humanos lá do serviço, fazem-se as contas à vida mesmo não fazendo a mínima ideia do que irá acontecer. Não sabemos se vamos precisar de um visto para continuar a viver na ilha, se vamos pagar as propinas dos meninos como se fossemos estrangeiros ainda que por cá vivamos ou se vamos começar a ser olhados de lado simplesmente porque não comemos Porridge.
O mal está feito. Mal comparado, é como a papa que esta gente teima em comer todos os dias. Mal amanhada, feita às três pancadas, mal misturada. E quando a base é feita assim, não há sementes, mel ou quinoa que lhe valham. Saberá sempre a trampa.
Tenho saudades das coisas simples. De uma boa papa Cerelac (com açucar extra por cima) ou até de uma Maizena com ovo. A ver se, da próxima vez que for a Lisboa, trago uma dessas para mostrar à Jess o que é bom.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: as dezenas suficientes para ter saudades. Umas três ou quatro.
Nas notícias por aqui: as mesmas que no mundo inteiro. Não se fala de outra coisa senão no Trump. Estou a pensar virar a parabólica e só ver televisão de Vanuatu ou das Fiji.
Sabia que por cá…a rainha celebrou 65 anos de reinado. Jubileu de Safira, dizem.
Um número surpreendente: 100 milhões de pessoas cruzam a estação de Waterloo todos os anos