São as fatídicas seis da tarde. Estou à volta de tachos e panelas enquanto os miúdos querem “ajudar” a cozinhar, ou brincar a qualquer coisa que implique um deles levar com um brinquedo em cima da cabeça, ou atirar as almofadas do sofá ao ar, provando mais uma vez que mesmo numa casa à prova de crianças se pode sempre partir alguma coisa. As hipóteses são múltiplas para explicar a minha falta de paciência quando o Roger me liga, a caminho de casa, a perguntar o que é que eu acho de ir viver para Kuala Lumpur. Falamos quando chegares a casa, devo-lhe ter respondido em tom seco e apressado, enquanto o mais pequeno já está a chorar porque levou com o dito brinquedo na cabeça, ou se ouviu o estrondo da planta da sala a cair em cima do tapete branco (sim, brilhante ideia com miúdos pequenos). Depois, foi-se fazendo luz… E meia hora depois, quando o Roger chegou, fui eu toda ouvidos e, mais depressa do que ele, entusiasta sem reservas da ideia de encaixotar outra vez haveres e afazeres e meter tudo num barco com destino à Malásia.
O nosso ponto de partida já não é Portugal, mas a Austrália, de onde o Roger é natural. Saímos de Portugal em Setembro de 2014 em direcção a Melbourne, com a ideia de assentarmos num país de múltiplas oportunidades; naquela que é considerada a cidade com melhor qualidade de vida do mundo inteiro. O Marc tem então dois anos e meio, e o Lucas ainda não cumpriu um ano. Nós não somos inexperientes nestas lides. Ambos já vivemos e trabalhámos praticamente nos cinco continentes (a mim faltava-me precisamente a Oceânia) enquanto cooperantes internacionais e o Roger também como técnico de informática. Com a sede de descoberta saciada de alguma forma e claramente relegada para um plano secundário depois dos filhos nascerem, a decisão da ida para a Austrália prendeu-se mais com conveniência do que com aventura. Viemos, decidimos, para assentar, para não nos mexermos até os miúdos saírem da Universidade e não precisarem de nós, caso o mundo se mantenha mais ou menos como o conhecemos até então.
Quando o telefone toca com o tema Malásia, já vivemos há dois anos na Austrália. De Melbourne já nos mudamos para uma pequena localidade na floresta, eu já trabalho como fisioterapeuta em part-time, já escolhemos a escola primária dos miúdos e já os inscrevemos até na maravilhosa Escola Secundária local, onde a lista de espera qualquer dia abrange recém-nascidos. Vivemos numa casa fantástica, todos os dias acordamos com o cheiro a eucalipto e todas as tarde dizemos olá a uma família de Cangurus, se não no nosso quintal, no quintal do vizinho. Idílico. À excepção das creches custarem uma fortuna, uma empregada de limpeza ganhar tanto como eu, não termos qualquer possibilidade de comprar uma casa a curto prazo, pagarmos uma quantia vergonhosa de aluguer de casa e não termos qualquer ajuda familiar por perto. Eis, portanto, a luz que se fez na minha cabeça. A Austrália será um local maravilhoso para viver em breve… Mas talvez não com dois miúdos pequenos. A Malásia foi assim, num primeiro momento, iluminada pela qualidade de vida que a curto prazo nos pode proporcionar. Depois, pela qualidade de vida que nos poderá trazer no futuro, na Austrália, uma vez que o objectivo será regressar dentro de alguns anos. Só depois, aos poucos e poucos, com bocejos de quem dormiu demais e espreguiçadelas gigantes, o bichinho da aventura foi acordando, abrindo os olhos e em breve começou a tomar conta de tudo, aos saltos de excitação: Sudeste Asiático, aqui vou eu!
E eis-nos pois, há apenas duas semanas, em Kuala Lumpur. Deixámos Woodend com neve, fomos despindo camadas de roupa até entrarmos no avião e finalmente aterrámos no Verão tropical permanente. Está quente, muito quente, muito húmido, estou a transpirar, onde está o próximo centro comercial, será mais ou menos a descrição em poucas palavras dos primeiros dias aqui. O tal bichinho também já não salta, não consegue, anda escondido, meio envergonhado. Eu perdou-lhe, embora ele não saiba. Já sei que os primeiros tempos são sempre assim, e são-o mais ainda com crianças. Raras vezes há amor à primeira vista. A realidade é menos romântica, mais paciente e exigente. É importante que haja algum interesse, alguma empatia, o solo fértil que permita fazer crescer uma estória. Mas não tem de ser tudo perfeito no início. Até porque de outra forma a estória é fraca e conta-se em três parágrafos.
Não há portanto amor à primeira vista. Vindos da floresta, do contacto sempre próximo com a natureza, da liberdade de movimentos das crianças no espaço exterior, é um desafio lidar com a grande metrópole do Sudeste Asiático: povoada por arranha-céus que se multiplicam como cogumelos, sempre mais em construção, cada vez mais altos; o calor intenso que não convida a estar fora de casa; a falta de infra-estruturas para se passear, assumido que é que se anda sempre de carro, com ar condicionado a topo. Desafios que não vão ser fáceis de superar, ou mesmo de contornar. Mas há também o outro lado, o tal onde pode crescer ainda muita coisa. Por exemplo a simpatia geral das pessoas, o sorriso sempre fácil e presente, que me relembra o quanto nós, os brancos ocidentais, constantemente de sobronho carregado, perdemos na vida. Ou a genuína devoção que as pessoas têm pelas crianças e que me faz acreditar que embora a vida aqui venha a ser muito mais fechada em quatro paredes do que na Austrália, os miúdos vão levar com eles uma experiência única e uma confiança neles e no mundo impagável. Ou a mistura de culturas, de gentes, de cheiros e sabores que promete enriquecer ainda tanto o nosso pensamento e o nosso pequeno mundo familiar.
Está tudo a começar aqui deste lado. Ainda vivemos temporariamente num Hotel, embora as chaves da nossa casa nos sejam entregues na próxima semana. Eu não sei qual será o meu papel por aqui. Não sei se conseguirei trabalhar como fisioterapeuta ou se talvez seja desta que me dedique à escrita, certo que está o meu regresso à profissão quando voltamos para a Austrália. O Roger está de volta ao que mais gosta de fazer, com um projecto aliciante e promissor. As nossas condições de vida têm tudo para ser excelentes. Desafios à parte, cabe-nos tirar o melhor partido desta oportunidade. Felizmente, somos peritos nisso, e os nossos filhos, com a natural adaptabilidade da infância, são-o mais ainda. Já não se lembram de Portugal, de Melbourne, ou mesmo de Woodend. Nenhum destes lugares está presente nas conversas. Para eles, a Malásia é o que interessa. Pelo menos por enquanto, porque receio que achem ser normal todos os anos mudar de casa, de cidade, ou mesmo de país ou continente!