Myo Ja não consegue esquecer o som das bombas, dos tiros, o fogo cruzado. O medo. Tinha apenas 10 anos e a guerra bateu à porta da aldeia de Nansai. A maioria das famílias da zona decidiu fugir e a história de Myo Ja não foi diferente, excepto que ela já não tinha laços de sangue que a acompanhassem. Fugiu da aldeia com o padrasto e caminhou durante dois dias até encontrar um sítio seguro para ficar. Foi há cinco anos, quando o conflito eclodiu entre as Forças Armadas de Myanmar e os grupos étnicos armados de Kachin, um dos 14 estados e regiões da República da União de Myanmar.
Myo Ja é uma das mais de 100,000 pessoas deslocadas daquele que é um dos conflitos civis mais longos do mundo, dizem. Há mais de 60 anos que o Tatmadaw, como são conhecidas as Forças Armadas, está em guerra com cerca de 15 grupos étnicos armados, sobretudo localizados nas zonas fronteiriças dos estados de Kachin e Shan, no nordeste do país, encostados à China, e no sudeste, junto à Tailândia. Do outro lado de ambas as fronteiras, milhares de refugiados esperam há anos poder voltar a casa.
Myo Ja é uma das mais de 100,000 pessoas deslocadas daquele que é um dos conflitos civis mais longos do mundo, dizem. Há mais de 60 anos que o Tatmadaw, como são conhecidas as Forças Armadas, está em guerra com cerca de 15 grupos étnicos armados, sobretudo localizados nas zonas fronteiriças dos estados de Kachin e Shan, no nordeste do país, encostados à China, e no sudeste, junto à Tailândia. Do outro lado de ambas as fronteiras, milhares de refugiados esperam há anos poder voltar a casa.
Vários focos de conflito surgiram logo após a independência em 1948 daquela que teve Birmânia como graça até 1989. A violência regenerou-se em 62 com o golpe militar do general Ne Win. Apesar de alguns acordos de paz pelo caminho, a guerra não arredou pé nem com o processo de transição do país em 2011, depois da realização de uma espécie de eleições multipartidárias (o “multi” esconde o facto do principal partido da oposição ter boicotado o processo eleitoral) e consequente tomada de posse de um governo “semi-civil”, cujos membros, incluindo o presidente, eram generais na reforma.
Este passado turbulento ajuda a explicar por que Myanmar ainda é um dos países da região com mais gastos militares relativamente ao PIB nacional. Este recorde bélico não vem nos guias turísticos do país que em 2015 recebeu 4,5 milhões turistas e que este ano espera a chegada de mais 6 milhões de almas viajantes.
Apesar de ainda não ir a meio, 2016 já fez história e nada tem a ver com os números crescentes (do turismo, dos deslocados, da primeira bolsa de valores, dos lucros da exploração dos recursos naturais, do número de investimentos chineses no país). Depois da realização em Novembro de 2015 das primeiras eleições democráticas desde 1990 (que incluíram todos os cerca de 90 partidos do país), a Liga Nacional para a Democracia (LND) da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi (leia-se “Chi” e não “Qui”) vingou-se nas urnas de um passado de perseguição por uns esclarecedores 84%. Quem quis testemunhar as intermináveis filas de eleitores que esperaram mais de 25 anos para este momento, teve que levantar-se às quatro da manhã (podiam ter-me avisado antes). Às oito, uma hora e meia depois da abertura das mesas de voto, já poucas ou nenhumas filas existiam. A maioria dos 30 milhões de eleitores já tinha depositado um voto de mudança nas urnas. Para consolo dos olhares estrangeiros, a contagem foi feita de porta aberta, em todas as mesas de voto do país, sob a observação ansiosa dos eleitores que não arredaram pé enquanto não confirmavam que o sonho ia, finalmente, tornar-se real.
Essa realidade só tomou posse no final de Março de 2016. Quatro meses de uma espera pacífica e ansiosa, temendo que os militares repetissem a história de 1990, quando esmagaram a vitória de de Aung San Suu Kyi.
Este é o ano de todas as esperanças. Nem os partidos e grupos étnicos armados escondem que Suu Kyi pode ser a chave para o fim do conflito. A Nobel da Paz não pode, no entanto, tomar posse como presidente uma vez que constituição tem uma cláusula em sua “homenagem”, impedindo que alguém casado com um estrangeiro e/ou com descendentes de outra nacionalidade possa tornar-se chefe de estado. Um artigo que é um rastilho deixado pela Junta Militar para manter longe do poder a ‘Lady’, como é carinhosamente tratada no país com cerca de 53 milhões de habitantes, 135 etnias e mais de 100 línguas e dialectos. Aung San Suu Kyi não pode alterar a constituição (os militares têm poder de veto nas duas câmaras legislativas), mas foi rápida a contornar os trâmites legais. A Liga apresentou e aprovou uma lei que cria um posto de Conselheiro de Estado para a cidadã Aung San Suu Kyi (uma lei criada também em sua homenagem, para manter a tradição). Este passo legislativo garante-lhe no papel, o papel que já desempenhava na vida política real, atrás do seu amigo de infância, Htin Kyaw, por ela nomeado para desempenhar apenas formalmente o cargo de presidente do país. Aung San Suu Kyi: Conselheira de Estado, Ministra dos Negócios Estrangeiros e Ministra do Gabinete do Presidente (até há algumas semanas ainda acumulava o cargo de Ministra da Educação e de Ministra da Electricidade e Energia, que acabou por delegar).
E neste ano de todas esperanças, outros números já cá cantam: cerca de 200 prisioneiros políticos foram libertados, naquela que foi a primeira medida do novo governo- estudantes, activistas, ambientalistas, internautas, gente que ousou expressar-se na terra dos pagodes dourados.
Entretanto, a próxima batalha já foi anunciada pela ‘Lady’: lutar por um acordo de paz com os todos os grupos armados e criar um Estado Federal, garantindo mais autonomia aos diferentes estados, como tem sido reclamado nos quatro cantos do extenso território de 677 mil quilómetros quadrados de superfície, mais coisa menos coisa.
Myo Ja é hoje uma adolescente de 14 anos que ainda tem medo de voltar para casa. Talvez nunca mais regresse para a sua aldeia natal, mesmo com o fim do conflito. Aprendeu a não dar-lhe tanta importância. Está focada no futuro. Dá tudo o que tem nos estudos, sobretudo do inglês, para que se abram as portas do mundo e para realizar um outro sonho- ser cantora. Enquanto isso não acontece, vai treinando com a música que lhe chega de fora e confessa um segredo: “Eu ouço sobretudo Justin Bieber. Ele tem boas canções que dão também para dançar.”
Myo Ja é nova, ainda há esperança que mude de opinião e de gosto musical. Afinal, em Myanmar, este é o ano da graça de 2016.*
*Expressão (deliberadamente) desapropriada para um país maioritariamente budista e com casos frequentes de extremismo e discriminação religiosa.