Tudo começa com o acaso, com qualquer coisa que nos fez sair daquele conforto da rotina do dia-a-dia, aquele algo que tenha saído do sítio, mesmo que o seu sítio tenha sempre sido o acaso de pensarmos que nada muda.
Em 2004 estudava árabe na Universidade da Jordânia em Amã. Entre muitos colegas de muitas nacionalidades, tinha dois amigos suecos que apesar de nem serem “aqueles amigos”, eram gente muito boa e com uma pinta de camaradagem bem agradável. No meio do curso em conversa de pátio eles disseram-me que iriam fazer uma viagem de 14 dias pelo Egipto e convidaram-me. 14 dias era imenso e não sabia se a organização onde fazia voluntariado me permitiria tal ausência. A vontade era contagiosa por isso acho que o jeitinho aliou-se à boa vontade e 1 dia antes da viagem lá consegui a bendita permissão para me ausentar de funções. Com apenas algumas horas para me preparar para o início da viagem, só me preocupei com as coisas básicas para levar, com o resto – hotéis, transportes, processos nem me preocupei, já que ele eram suecos, por isso teriam já tudo planificado e organizado. (not)
A viagem começou em Amã, seguimos em táxi partilhado (táxis que só saem da paragem até estarem completos de passageiros) até Aqba no sul da Jordânia, atravessando o deserto de Wadi Rum, apanhámos depois um Ferry no Mar Vermelho (ver mapa) aproveitando para contemplar a lindíssima viagem com vistas deslumbrantes sobre a Arábia Saudita, Egipto, Jordânia e os territórios ocupados da Palestina por Israel. Procurámos um local para nos sentarmos e no meio de todo aquele encantamento disse: Isto foi tudo uma correria e nem me lembrei de perguntar como é que vamos para o Cairo e em que Hotel iremos ficar. O Joaquin olhou para mim e disse: Bruno ainda bem que nos lembraste. Vamos lá planificar a viagem – puxando ao mesmo tempo de um Guia de Viagens sobre o Médio Oriente. Confesso que o meu coração parou… ir para um país tão caótico e não ter a viagem preparada?! Perguntei-lhes em jeito de afirmação: Mas vocês são Suecos… não deveriam ter já tudo programado em detalhe?! E o seu sorriso sem estereótipos disse tudo.
A primeira vez que saí de Portugal foi com 25 anos e o primeiro país que visitei foi a Jordânia, o Egipto era apenas o segundo país que visitaria então estava algo preocupado com este caos que não estava habituado e nem sabia se estaria verdadeiramente preparado – era e continuava a ser um “menino da aldeia”. Depois do susto inicial, e de entender que naquele momento não haveria volta a dar, lá planificámos a viagem até ao Cairo. Atracámos no Porto de Nuweiba e depois do caos da fronteira e processos de entrada no país, apanhámos um autocarro que percorreria toda a península do Sinai e 14 horas depois chegaríamos à cidade que não dorme. Chegámos às 3 da manhã, negociámos um táxi que nos levasse até ao hotel e alguns metros depois de iniciarmos a viagem eu digo ao condutor que vai ao meu lado: Desculpe, mas esqueceu-se de ligar as luzes. Ele olha para mim com cara de pessoa ofendida pela santa ignorância do outro (que era eu), e num tom de voz altíssimo e trágico-cómico aponta para cima e diz: Mas com estes candeeiros todos, com toda esta luz porque é que vou gastar a minha?? Eu verifico que o meu cinto de segurança está mesmo apertado e pedi a Ra (Deus do Sol) que nos iluminasse o resto da viagem. Segundos depois, chegamos a uma rotunda e como tínhamos de virar à esquerda, é mesmo pela esquerda que vamos. Eu falo alto com indignação: What was that?? (O que é que foi isso??) ele responde-me com o mesmo ar de iluminado: se vou para a esquerda e não há carros, porque é que vou estar a demorar mais tempo a fazer toda a rotunda? e vocês não estão cansados? Assim até chegam mais rápido.
Foi duro mas lá chegámos. Vi que o Hotel por sorte ficava a apenas dois blocos do museu mais brutal que alguma vez visitei – o Museu Egípcio. Saímos do táxi e ficámos à porta de um prédio grande, antigo, parecido com os prédios da baixa de lisboa. Olhei para os meus amigos e disse: uau… o nosso hotel é bem interessante para o preço que vimos no livro. Entrámos e não havia lobby de entrada, nem recepção. Nada. Apenas escadas e um elevador dos meados do século XX que não trabalhava. Eles explicaram-me que o nosso hotel ocupava só o último piso do prédio.
Tudo de facto era mesmo muito novo para mim, a forma de viajar, partilhar viagens com quase desconhecidos ou mesmo só a própria questão de viajar. Tudo era uma aprendizagem enorme e mais que uma viagem ao Egipto, era uma viagem fabulosa a todo um Bruno que tão pouco me era então conhecido.
O último andar do hotel não era nada menos que um terraço com várias casinhas que eram os quartos. Ficámos três dias no Cairo e arrabaldes. Visitámos 12 das mais de 150 Pirâmides (e tantas outras mais por descobrir), visitámos o Museu Egípcio, o imperdível e imenso Mercado de Khan el Khalili onde tantas vezes nos perdemos, ou uma noite num dos hotéis mais bonitos e históricos do Cairo – Windsor onde passámos várias horas na principal sala/bar a contemplar a fabulosa noite do Cairo, a fumar Arguilleh e, numa das mais brutais experiências musicais, ouvir do início ao fim na Rádio pública todo o álbum – Guitarra Portuguesa do Carlos Paredes. Não podia pedir mais.. não podia sonhar com algo melhor. Nas rádios Portuguesas é raro passar uma música, quanto mais todo um álbum do Carlos Paredes. E o genial foi a gestão do hotel ter deixado tocar enquanto se deliciavam com os sons parecidos com os do alaúde árabe (Aqui tocado pelo Trio Joubran da Palestina e que já várias vezes vieram encantar Portugal).
Com a agenda sempre incerta, reparámos que o nosso hotel tinha vários pacotes de viagens e reparámos num pacote de 7 noites e 8 dias de viagem de Falua desde Assuão no sul do Egipto até Luxor (mapa). A viagem incluía todos os transportes (comboios, carros e autocarros) até Assuão e depois lá começaria a viagem naquele pequeno barco que à bolina triangulava todas as margens do Nilo.
Esta foi mais que uma viagem, foi um desconcerto interno fabuloso que me tornou mais humano e mais em paz com a natureza e com o universo. O pequeno barco não tinha nada mais que uns colchões de esponja onde dormíamos, onde passávamos os dias e as noites, de margem em margem a contemplar o mais profundo Egipto. Parámos em muitas aldeias, visitámos um dos maiores mercados de Camelos de África, fomos convidados a comer em casa de gente que não tinha muito, mas o pouco que tinham era o tanto que tanto nos alimentou. Comíamos todas as refeições (quase todas elas preparas pelo nosso capitão num pequeno fogareiro a carvão) e tudo era cozinhado com a água do nilo, a base era arroz branco e um refogado de vegetais, sendo a base a curgete.
A meio da viagem, estávamos quase a chegar a um pequeno porto e vemos imensa gente a gritar e a apontar para o Rio. Gritei para o nosso comandante para entender o que se passava e ele disse-me que alguém tinha acabado de desaparecer nas águas. O barco não tinha atracado e já eu me tinha mandado ao Nilo para ver se encontrava o rapaz. Um par de minutos depois vem uma outra falua com um grupo de Australianos onde um dos passageiros era um rapaz que tal como eu, tinha muitos anos de natação. Passámos mais de 15 minutos até que finalmente toco num braço no fundo do rio. Venho para cima, chamo o australiano, mergulhámos e conseguimos trazer o rapaz à superfície. Fizemos tudo o que podíamos, passámos muito tempo em várias tentativas de reanimação cardio-respiratória mas nada.. o rapaz morreu ali.
Chamava-se Ali e era um rapaz de uma vila longínqua que trabalhava numas obras naquela aldeia. No fim do dia todos os trabalhadores iam àquele embarcadouro para se lavarem. O Ali estava a lavar-se como os outros, mas escorregou mas nem ele nem nenhum dos colegas sabia nadar… e então viram-no desaparecer entre gritos de desespero na profunda incapacidade de o salvar.
Depois de tudo acalmar, fiquei sentado naquele porto, a ver o por-do-sol mais lindo que vi até hoje, em que o laranja caía entre o azul do Nilo e as verdes Palmeiras que habitam as suas margens. Naquele dia fiquei-me por ali. Sentado na terra áspera e pensando na vida não menos dura daquelas gentes. Entendi que o meu propósito teria de ser bem maior que todas as frustrações da vida, teria de ser uma estória que eu próprio queria escrever, percorrendo a vida sem planos mestres e navegando à bolina com o sabor do vento. Naquele fim de tarde, não consegui salvar o Ali, mas ele ajuda-me até aos dias de hoje a nunca parar de ter alento para salvar a vida de muitos outros, para que não morram em vão, para que fiquem cá para contar mais uma estória.