Porque os habitantes de Darmstadt – cidade cercada pelo Reno de um lado e o Odenwald do outro, um pouco a sul de Frankfurt, no sul do Estado de Hessen, antiga capital do soberano Grão Duquado de Hessen, e cuja tradução literal do nome resulta em Cidade do Intestino – se auto-intitulam Heiners, ninguém sabe ao certo, mas certo é que o apelido é usado com orgulho e dá nome à principal festa popular da cidade que dura 4 dias em Julho – a Heinerfest.
Em Julho, há quase 13 anos, foi quando cheguei a esta cidade, naquela altura ainda sem saber que seria por tanto tempo. Como ainda me perguntam todos os novatos que aqui chegam, também eu perguntei então o que havia para gostar neste sítio? Uma pessoa habitua-se, parece-me lembrar ter sido a resposta mais normal, e o trabalho é porreiro.
A primeira impressão parece sempre ser alarmante: esta cidade parece feia, cinzenta, monótona, sem nada para fazer, longe do mar, longe das montanhas, bem, e se quisermos puxar ao preconceito, cheia de alemães e das suas idiossincrasias. Que bom que o meu contrato apenas previa dois breves aninhos até ao regresso à pátria saudosa e ao sol e ao marisco.
A verdade é que esse primeiro Verão (excepcionalmente quente para o que era até então normal) passou rapidamente e com ele as duas primeiras lições: Esta cidade, pela proximidade ao aeroporto de Frankfurt, está praticamente no centro do mundo, e esta cidade acolhe generosamente os estrangeiros. O primeiro preconceito, que os alemães não falam e não se esforçam por falar outra língua, dissipado, e o segundo, que os alemães não têm sentido de humor, contestado – não é humor negro ou absurdo Britânico, ou humor auto-deprecatório dos Holandeses, ou a farsa pateta à Portuguesa, mas algo mais refinado e inteligente, mas ainda assim humor.
O clima continental, com muito calor no Verão e grandes nevões no Inverno que nos habituámos a ver associados a Berlin nos telejornais, não se faz sentir nesta região amenizada e protegida pela presença do vale do Reno – nunca cá apanhei uma chuvada das valentes que chegam até aos ossos.
Com o passar do tempo, até os olhos com que vês a cidade mudam. Quando aceitas que o centro é, de facto, uma remodelação pós-guerra pouco inspirada, e te embrenhas pelos restantes bairros, começas a descobrir variadas pérolas arquitectónicas concebidas desde os tempos dourados do início do século XX até aos nossos dias: A antiga colónia de artistas da vanguarda da Art Nouveau ou Jugendstil (patrocinada pelo visionário Grão-Duque Ernst Ludwig e que incluía entre outros o austríaco Joseph Maria Olbrich) no Mathildenhöhe (complexo que inclui também a bela torre dos casamentos, símbolo da cidade, e a capela ortodoxa Russa com o seu pináculo dourado doada pelo último Czar da Rússia), as variadas mansões em estilo Vitoriano nos bairros residenciais antigos, a casa Ernst-Neufert em estilo Bauhaus, os parques citadinos do Herrngarten (ponto obrigatório de lazer em dias solarentos e que inclui o jardim Prinz-Georg que produz vegetais frescos no Verão) e do Rosenhöhe (que dislumbra pelos roseirais coloridos), e sem esquecer a magnífica Waldspirale – complexo residencial projectado pelo arquitecto Friedensreich Hundertwasser num estilo biomórfico próximo de Gaudí – e o Darmstadtium o moderno e futurístico centro de congressos.
Agora que os olhos estão apaziguados e satisfeitos bela suficiente abundância de beleza espalhada pelos recantos, convém referir o estilo de vida que nos espera. Esta é uma cidade que se destaca pelo seu sentido progressista e multicultural.
É gerida, desde os últimos 5 anos por um presidente de Câmara (do partido dos Verdes) que se desloca pela cidade em bicicleta. Aliás sendo uma cidade plana e relativamente pequena, com clima ameno, a bicicleta é mesmo elemento de comodidade, rapidez e economia. Não há hipster barbudo que se preze que não corra a cidade de boné Irlandês na sua bakfiets (vêr no Google) electrificada. Sustentabilidade e protecção ambiental são coisas que são levadas a sério.
É assento de uma das mais antigas e prominentes Universidades Técnicas da Alemanha – a TU Darmstadt – e do Centro de Pesquisa de Iöes Pesados (GSI Helmholtz) onde foram descobertos vários elementos da tabela periódica, incluindo o Bohrium, Meitnerium, Hassium, o Roentgenium, o Copernicum e, é claro, o Darmstadtium! É assento dos centros de operações de satélites da Agência Espacial Europeia (ESA) e da Organização de Satélites Meteorológicos (EUMETSAT). É ainda assento da mais antiga farmacêutica do mundo, a Merck. Todos estes sítios atraem uma fauna de profissionais das mais variadas nacionalidades, criando uma atmosfera cosmopolita e internacional.
Mas se isso não fosse suficiente, os nativos destacam-se pela generosidade com que recebem também os que cá chegam pelas piores razões. Quando, no fim do Verão do ano passado, o fluxo de refugiados de repente escalou, eu confesso que me senti envergonhado de ser Europeu, mas orgulhoso de ser um Heiner, porque a resposta dos meus concidadãos à crise foi exemplar. Em pouquíssimos dias a cidade já se tinha preparado para receber várias centenas, com centros de acolhimento respeitáveis, com muitos voluntários prontos a ajudar e com armazéns a abarrotar de doações de todos os bens que pudessem vir a ser precisos. Como resultado a experiência de integração dos refugiados foi extremamente positiva com ambas as comunidades (a residente e a nómada) a esforçarem-se por criar uma atmosfera pacífica, de amizade, interesse mútuo e de entreajuda – exemplar!
E quanto a ser monótona, duas coisas: por um lado é também segura, o que é especialmente atractivo para quem está a criar crianças pequenas, e por outro lado, quando se vai ver melhor, tem uma vida cultural muito preenchida, se contarmos com o programa do Teatro Estatal e de outras quantas salas mais pequenas mas catitas, com a maravilhosa colecção do Landesmuseum e com a galeria de arte vanguardista e sempre bem curada do Mathildenhöhe, com a casa de espectáculos convertida numa antiga central eléctrica que traz músicos maravilhosos do mundo inteiro – incluindo muitos lusófonos: já cá tivemos a Lura, a Sara Tavares, a Mayra Andrade, a Daniela Mercury, a Cristina Branco e a Mízia, entre outros – com um auditório de Jazz convertido numa cave antiga, com o pequeno mas agradável jardim zoológico e um jardim botânico, e com uma cena literária também vibrante.
Mas actualmente, nada ou ninguém incorpora melhor o espírito empreendedor, motivado e batalhador das gentes desta cidade como a sua equipa de futebol, o SV Darmstadt 98, ou os Lílios, como são conhecidos na gíria do meio. Se existe um milagre futebolístico moderno, é o que foi operado por esta equipa. Que há pouco mais de 3 anos militava numa quarta divisão, e em três épocas consecutivas, dependendo apenas de si, do seu espírito abnegado, da sua grande força de vontade e com um estilo coeso e lutador, e sem sheiks das Arábias, sem dinheiro e sem estrelas chegou à Bundesliga onde agora mede forças com colossos como o Bayern München e o Borussia Dortmund. Mesmo os fans da equipa são especiais, sempre bem dispostos e acolhedores…
Quando agora os novatos me perguntam como é que é aguento viver aqui e se não sinto saudades de ‘casa’, eu respondo orgulhoso: mas… ich bin ein Heiner!