“Quero apenas cinco coisas…/ Primeiro, o amor sem fim/ A segunda é ver o outono”, excerto de um poema de Pablo Neruda
Volta o outono, esse pedaço do tempo que pede regresso, paragem, a quebra inevitável após o verão e os seus sorrisos trocados, alguns amores ganhos ao sol, outros perdidos em breves noites de luar. Não sabemos se o outono é começo (de outra maneira), mas é bem possível que seja amor, ver sem fim. É recolhimento, olhar melhor para aquilo que só se consegue ver e amar quando os dias quebram e voltam a outro ritmo, dizem que mais suave, terno, presente. Ver o outono de forma acolhedora talvez seja sentir o apelo da escuta, num movimento do corpo e da mente que dirigido para dentro, atento ao interior, buscando a pessoa que sou eu, o outro ou numa lógica mais verdadeira em jeito de pergunta: quem sou eu com o outro?
“A quinta são teus olhos”, continua o poeta, “não quero dormir sem teus olhos/ não quero ser… sem que me olhes”. E, vulgarmente, para onde se dirige o nosso olhar, hoje mais do que nunca, se não quase unicamente para fora? É certo que os olhos são feitos para estarem atentos e (re)conhecerem o que os cerca (é isso a realidade?). Olhos à espera e atentos, por isso querendo-se aptos para amparar tudo o que cai: as folhas, os frutos, outros olhos também (tímidos, tristes, perdidos) que esperam que alguém os veja de forma benévola, amável.
Mas o outono fala-nos ainda da necessidade de olhos que vejam para dentro, à noite, quando por eles passam os sonhos que mais ninguém sabe dizer, ou de dia quando se detêm em perguntas à espera de respostas. Ainda bem que há crianças e adolescentes que se recordam dos sonhos que os habitam, agora e para sempre (qual o adulto que não se recorda de um deles, em pequeno?), e ainda de outros que viveram de dia, fugindo a tudo quanto puxa um olhar para baixo, diante da dura rotina a que não é mau saber fugir. Mentes sonhadoras, day dreamers, não tenham medo: o mundo fica sempre melhor com a vossa presença. Cabeças melancólicas, corpos capazes de parar e estar quietos e silenciosamente se entregarem envolvendo todos os que amam, obrigado: o outono é, com certeza, a vossa estação ideal e que bem isso faz a tantos.
Por vezes, perguntamos em dúvida: que é feito do interior? Como fica perdido na sua imensidão inquietante, agora que as luzes da tarde se voltam a acender mais cedo e mostram a mancha diversa de um território que se ilumina apenas junto à água, à cidade, ao espaço de muitos perto de muitos, onde tantos são cada vez mais sós? Como podem renascer as árvores queimadas pelo sol do verão, agora que de novo releem a palavra solidão? Que importa como se enchem os rios mais secos, quando não longe dali há mar e sobre ele, mais céu a ver, horizonte infinito que promete futuro? Quem ousa desligar-se sem medo de si mesmo e ouvir-se, conhecer-se melhor diante das primeiras noites frescas, das breves chuvas que regressam? Quem quer mandar parar, por instantes, a festa aparente que parece comandar-nos dia a dia e que se publica aos olhos cegos dos outros, que esperam contínua aprovação numa view ou num like?
“A terceira, o grave inverno/ em quarto lugar o verão”, assim se preenche o poema de Neruda. Sim. Só passando, ainda mais tarde, pelo inverno do despojamento, do frio do corpo que facilmente invade a alma, se chega por último ao verão. Vê melhor quem reconhece quão curto e incerto é o seu olhar. Depois, renasce com mais força e alegria o que já soube, vivendo, o significado do outono. Quero que me olhes, pedem tantas vezes as crianças e os adolescentes… Não quero dormir sem ti, escondem outros no seu desejo profundo de um amor sem fim. Para que nenhuma pequena grande árvore permaneça despida ou só, para que esse rio da infância não pare de fluir, aproximemo-nos um pouco mais do outono que agora volta. Vão dizer-vos que era melhor manter sempre acesa a luz, presente o calor certo que encanta, mas nem sempre, nem sempre…
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.